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ТИНТ: португальский – 3000
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Описание:
Тексты на португальском языке 3000-3100. Словарь в стадии наполнения базы.
Автор:
Велимира
Создан:
14 июня 2020 в 20:15
Публичный:
Нет
Тип словаря:
Тексты
Цельные тексты, разделяемые пустой строкой (единственный текст на словарь также допускается).
Содержание:
1 Além disso, tanto os pintores como os seus amigos eram uns pobretões, e não seria com certeza nos seus ateliers que eu conseguiria algumas relações úteis. De repente meteu se lhe na cabeça fazer me bailarina. A sua cabeça estava sempre cheia de ideias ambiciosas, ao passo que eu, como já tive ocasião de dizer, sonhava com um marido, filhos e uma vida simples e tranquila. A ideia da dança veio à minha mãe num dia em que recebera uma encomenda de camisas para o director de uma companhia de variedades que se exibia num cinema entre dois filmes. Isto não quer dizer que minha mãe pensasse que a profissão de bailarina fosse por si própria muito lucrativa; mas, conforme afirmava constantemente, umas coisas levam às outras e quem se exibe num palco mais tarde ou mais cedo acaba por encontrar um homem decente. Um dia declarou me que falara com o director e que este me queria conhecer. Fomos, assim, uma manhã ao hotel em que ele e os seus artistas estavam hospedados. O hotel – recordo me perfeitamente – ficava num prédio muito grande e muito velho perto da estação. Era quase meio dia quando lá chegámos, mas os corredores ainda estavam em profunda obscuridade. O cheiro humano que saía de todos aqueles quartos era tão forte e tão denso que chegava a dificultar a respiração. Percorremos vários desses corredores e acabámos por entrar numa espécie de antecâmara sombria, onde três bailarinas se exercitavam ao som de um velho piano desafinado. Este piano estava arrumado num ângulo da parede junto da porta de vidro fosco das retretes; no canto em frente havia um enorme montão de lençóis sujos. O pianista, um velho pálido, tocava de cor; deu me a impressão de pensar noutra coisa e talvez até de estar a dormir. As três bailarinas eram jovens; tinham despido os corpetes, conservando as saias de baixo, e dançavam com o peito e os braços nus. Seguravam se umas às outras pela cintura, e quando o pianista atacava uma ária caminhavam na direcção do montão de roupa suja, levantando as pernas e passeando as num movimento de conjunto, primeiro para a direita e depois para a esquerda; depois com uma atitude provocante, extremamente bizarra neste lugar sombrio e lúgubre, imprimiam às nádegas uma oscilação vigorosa. Quando olhei para elas e as vi bater com os pés no chão com um barulho rítmico, forte e surdo, senti que me faltava a coragem. Não ignorava que, apesar das minhas pernas longas e robustas, eu não possuía a menor queda para a dança. Tinha recebido lições, juntamente com duas amigas, numa escola do bairro. As minhas camaradas haviam conseguido em poucos dias apreender o ritmo e mexer as pernas e as ancas como duas bailarinas bem treinadas; eu, pelo contrário, parecia feita de chumbo. Isto dava me a impressão de não ser feita como as outras raparigas e julgava existir em mim qualquer coisa de maciço e de pesado que a música não conseguia atingir. Além disso, nas raras vezes em que tinha dançado, o facto de sentir um braço apertar me a cintura dava me uma tal sensação de moleza e de abandono que eu arrastava as pernas em lugar de as mover.
2 A verdade é que eu só muito vagamente compreendia os projectos da minha mãe. Mas mesmo mais tarde, quando adquiri experiência da vida, nunca tive coragem para lhe perguntar como, incompreensivelmente, tendo ela essas ideias, tinha acedido a casar com um pobre diabo e cair na miséria. Muitas das suas alusões tinham me feito compreender que a verdadeira culpada deste estado de coisas era eu, visto que o meu nascimento não tinha sido previsto nem desejado. Por outras palavras, o meu nascimento fora ocasional, e minha mãe, sem coragem de me impedir de nascer (como deveria ter feito, segundo dizia muitas vezes), não tinha tido outro remédio senão casar se com meu pai e aceitar todas as consequéncias desastrosas de um casamento semelhante. Por isso, com frequéncia, referindo se ao meu nascimento, afirmava: "Tu foste a minha ruína!" Estas palavras, apesar da tristeza que me causavam, foram durante muito tempo perfeitamente obscuras para mim. Só muito mais tarde lhes consegui apreender o sentido exacto. O que elas realmente significavam era: "Sem ti nunca me teria casado e a esta hora tinha automóvel!" Era perfeitamente compreensível que, nutrindo ideias destas acerca da sua própria vida, minha mãe não concebesse para mim, muito mais bonita do que ela fora, o caminho dos mesmos erros, e portanto um destino semelhante. Hoje, que me é possível ver as coisas em perspectiva, não tenho coragem de a condenar. Para minha mãe a palavra família significava miséria, escravidão e algumas pequenas alegrias rapidamente terminadas com a morte do meu pai. Era natural, senão justo, que considerasse a vida honesta e familiar como um caminho seguro para a desgraça e estivesse alerta a não me deixar tentar pelas miragens que a tinham atraído. A sua maneira, minha mãe gostava muito de mim. Por exemplo: logo que eu comecei a frequentar os ateliers, fez me dois vestidos: um fato inteiro e outro de saia e casaco. Para falar verdade, eu teria preferido roupa interior, porque tinha vergonha, sempre que era forçada a despir me, da minha roupa grosseira, usada, e até muitas vezes pouco limpa. Mas minha mãe declarava que o importante era o que estava à vista. Para os fatos escolheu dois tecidos baratos, de cor e padrão vistosos, e cortou os e coseu os ela própria. Mas, porque era camiseira e não modista, apesar da sua boa vontade, os resultados foram desastrosos. Lembro me de que o fato inteiro fazia pregas no peito, deixando me de tal maneira os seios a descoberto que fui obrigada a usar constantemente um alfinete para fechar um pouco mais o decote, e que o fato de saia e casaco estava demasiadamente apertado e fazia rugas e pregas por todos os lados. Apesar disso, estas roupas pareceram me verdadeiras maravilhas, em comparação com as coisas que até ali usara. Minha mãe comprou me também dois pares de meias de seda. Tudo isso me encheu de alegria e de orgulho. Pensava constantemente, com encanto, nas minhas novas coisas e nem por um momento abandonava a preocupação de as não sujar ou estragar, como se aqueles míseros trapos tivessem saído das mãos de um grande costureiro.
3 Também os jardins que os rodeavam, apesar de pequenos, estavam cheios de plantas e davam me uma doce sensação de intimidade, em contraste com a desagradável promiscuidade da rua. Na minha casa era isso o que se encontrava a todos os momentos e em toda a parte, a rua: no vasto vestíbulo, que tinha o ar de um armazém abandonado, na larga escada nua e suja, e até nas salas, cujos móveis desirmanados e a cair aos pedaços me faziam pensar nos ferros velhos que os compravam e vendiam ao longo dos passeios. Uma noite de Verão em que passeava na rua com minha mãe, pela janela de um desses pavilhões vi uma cena familiar que se gravou para sempre no meu espírito e me pareceu corresponder ponto por ponto à ideia que tinha do que deve ser uma vida normal e decente. Uma sala pequena, mas arrumada e limpa, com as paredes forradas de um papel pintado às florinhas, uma credência e um candeeiro de tecto suspenso ao centro da sala por cima da mesa posta. A roda desta mesa sentavam se cinco ou seis pessoas, entre as quais três crianças dos oito aos doze anos. No meio da mesa havia uma terrina, e a mãe, de pé, servia a sopa. Por muito estranho que isto possa parecer, de todas estas coisas a que mais profundamente se gravou na minha memória foi a luz da suspensão, ou, melhor, o aspecto extraordinariamente sereno e normal que todas as coisas tomavam vistas sob esta luz. Mais tarde, sempre que voltei a pensar nesta cena, tive a convicção absoluta de que o meu fito na vida devia ter sido viver numa casa idêntica, ter uma família como esta e passar os meus dias ao clarão de uma luz assim, que parecia revelar a presença de tantas afeições seguras e tranquilas. Muita gente há de sorrir da modéstia das minhas aspirações. Mas é preciso não esquecer o que eu era nesse tempo. Para mim, nascida num autêntico tugúrio, aquele pavilhão modestíssimo surgia aos meus olhos como surgiria aos olhos dos seus habitantes, que eu tanto invejava, um dos maiores e mais sumptuosos palácios dos bairros aristocráticos, tão certo é ser o paraíso de uns o que para outros não passa do inferno. Minha mãe, ao contrário, acalentava grandes projectos para o meu futuro, e eu depressa compreendi que esses projectos excluíam por completo qualquer tipo de vida parecido com o que eu própria desejava. O que ela pensava, em resumo, era que a minha beleza me permitia aspirar a todos os géneros de êxitos, mas de nenhum modo a tornar me, como as outras raparigas, uma mulher casada, vivendo para o marido e para os filhos. Sendo nós extremamente pobres, a minha beleza parecia lhe o único património de que dispúnhamos, e pertencia, portanto, tanto a mim como a ela, visto ter sido dela que eu a recebera ao deitar me ao mundo. E esta riqueza devia servir me para melhoria da nossa situação, sem ligar importância ao que podiam ser as convenções sociais. No fundo isto não passava de uma completa falta de imaginação. Numa situação como a nossa, a ideia de pôr a minha beleza a render era perfeitamente intuitiva. Minha mãe adoptou a, agarrou se a ela e nunca mais a abandonou.
4 Perto dessa porta havia uma espécie de Luna Parque, sempre iluminado e com música durante o tempo seco. Da minha janela eu podia ver grinaldas de lâmpadas multicores, tectos dos quais se erguiam pequenas bandeiras e pendões e a multidão que se comprimia à entrada, debaixo dos enormes plátanos que davam sombra a esse lado da rua. A música ouvia se distintamente em nossa casa. Muitas vezes, durante a noite, eu deixava me ficar acordada para a escutar, sonhando com os olhos abertos. Parecia me que ela chegava até mim vinda de um mundo inacessível, circunstância que a pequenez do meu quarto reforçava. Tinha a impressão de que toda a população da cidade vinha divertir se para o Luna Parque e que eu era a única que não tinha posses para o fazer. E a música, que soava em toda a noite, evocava no meu espírito a ideia de um castigo que eu sofria por causa de crimes que devia ter cometido, mas que ignorava quais tivessem sido. Por vezes, ao ouvi la, chegava a chorar, de tal modo a minha exclusão me humilhava e tornava infeliz, porque nesse tempo eu era terrivelmente sentimental: um gesto ou uma palavra mais brusca de uma amiga, uma censura de minha mãe, uma cena emocionante vista no cinema, qualquer coisa era suficiente para que as lágrimas me viessem aos olhos. Possível que eu não tivesse com tanta nitidez a percepção de um mundo de felicidades que me estavam vedadas se durante a minha infância minha mãe não impedisse tão exclusivamente a minha entrada no Luna Parque. Mas a sua viuvez precoce, a sua falta de recursos e principalmente a sua hostilidade para com todos os divertimentos de que ela própria estava privada fizeram com que ela nunca me permitisse a entrada no Luna Parque ou em qualquer outro lugar de distracção senão muito mais tarde, quando eu já era uma mulherzinha e o meu carácter já se encontrava formado. Provavelmente a isso que devo ter guardado em toda a minha vida esta convicção da existência de um mundo de alegria e de felicidade vedado para mim por um destino ao qual já pertencia ainda antes de ter nascido. E esta sensação radicou se tão profundamente dentro de mim que não consigo libertar me dela nem quando tenho a certeza de que sou feliz. Já disse que nesse tempo a minha grande aspiração era o casamento. Agora posso ver qual era o verdadeiro aspecto que essa ideia tomava dentro de mim. A rua em que morávamos atravessava, quase no seu termo, um bairro menos pobre do que o nosso. Em lugar das nossas casas baixas e iguais, semelhantes a carruagens de caminho de ferro, empoeiradas e velhas, podiam ver se aí pequenos pavilhões rodeados de jardins. Não eram luxuosos. Os que lá viviam não passavam de modestos empregados ou remediados comerciantes, mas, em comparação com a miséria da nossa casa, esses pavilhões eram infinitamente confortáveis e alegres. Além disso eram todos diferentes uns dos outros e não mostravam o aspecto de decadência que dão as paredes sem cal e cheias de gretas, característica dominante da nossa casa e das dos nossos vizinhos.
5 As recomendações e os conselhos de minha mãe eram desnecessários, porque eu era nesse tempo extremamente séria, talvez como consequência da minha juventude. Depois deste pintor trabalhei para outros e tornei me muito conhecida entre eles. Devo dizer que, de um modo geral, os pintores se mostravam correctamente reservados e respeitosos para comigo, se bem que alguns deles nada fizessem para me esconder os seus sentimentos a meu respeito. Mas eu afastava os imediatamente com tal violência que rapidamente adquiri a fama de que comigo nada havia a fazer. Mas creio que a verdadeira razão do modo reservado como os pintores se portavam comigo era que na realidade o que lhes interessava não era fazer me a corte, mas pintar. Ora, enquanto desenhavam ou pintavam, os olhos com que me viam eram olhos de artista, e não de homem. Quero dizer que, na minha opinião, olhavam para mim com a mesma insensibilidade com que teriam olhado para uma cadeira ou para outro objecto qualquer. Estavam habituados a trabalhar com modelos, e o meu corpo nu, apesar de jovem e provocante, não lhes causava qualquer impressão, como sucede com os médicos. O que me complicava às vezes a existência eram os amigos dos pintores. Chegavam e punham se a conversar. Mas não tiravam os olhos de mim, apesar da indiferença que afectavam. Outros nem sequer tentavam disfarçar o que sentiam e andavam constantemente de um lado para o outro de modo a poderem mirar me de todos os ângulos. Foram estes olhares e as obscuras alusões de minha mãe que acordaram o meu amor próprio feminino, tornando me consciente, ao mesmo tempo, da minha beleza e das vantagens que podia tirar dela. E acabei, não só por me habituar a essas assiduidades, mas até por sentir um certo prazer quando os visitantes se perturbavam por minha causa e uma estranha desilusão quando isso não acontecia. Terminei por convencer me, como o desejava minha mãe, de que eu possuía na minha beleza um bom capital, que um dia poderia render lucros pingues e seguros. Nessa época da minha vida eu pensava, no entanto, em me casar. Os meus sentidos ainda não tinham acordado e, pondo de lado a vaidade, os homens que olhavam para mim enquanto posava não me provocavam qualquer sentimento. Entregava pontualmente a minha mãe todo o dinheiro que me pagavam, e quando não tinha trabalho ficava com ela em casa, ajudando a a cortar e a coser as camisas. Este era o nosso meio de existência desde a morte de meu pai, que tinha sido ferroviário. Vivíamos num pequeno apartamento situado no segundo andar de uma pobre casa, construída havia cinquenta anos para o pessoal dos caminhos de ferro, numa rua da periferia da cidade. De um lado havia uma fileira de construções do mesmo tipo, com dois andares, uma fachada de tijolos sem reboco, doze janelas – seis em cada andar – e em baixo uma porta central. Do outro lado estendiam se as antigas muralhas da cidade, que neste local se mantinham de pé, cobertas de heras e trepadeiras. Uma porta rasgava se nessas muralhas, próximo da nossa casa.
6 Não me apercebia da desoladora fealdade da minha casa. Uma enorme sala servia de atelier, com uma grande mesa ao centro, coberta de trapos. Havia mais trapos pendurados nos pregos colocados nas paredes sombrias e desbotadas e algumas cadeiras desmanteladas. Um quarto onde eu dormia com minha mãe numa cama de casal; mesmo por cima da minha cabeça, quando estava deitada, o tecto tinha uma grande mancha de humidade; quando estava mau tempo chovia nos em cima. Tínhamos uma pequena cozinha escura recheada de pratos e panelas, que minha mãe por desmazelo nunca chegava a lavar completamente. Não me apercebia da vida de sacrifício que levava, sem divertimentos, sem amor, sem amizade. Quando penso na rapariga que eu era, na minha inocência e na minha bondade, sinto uma grande compaixão por mim mesma, impotente e entristecida, a mesma que se sente quando, ao ler se um romance, desejamos evitar a uma personagem simpática as desgraças que lhe vão acontecer, sabendo ao mesmo tempo que as não poderemos impedir. A vida é assim: a bondade, a inocência, nada valem para os homens. E não será talvez um dos seus menos dolorosos mistérios que as melhores qualidades que a natureza nos deu – e todos entusiasticamente louvam – não sirvam senão para nos tornar mais desgraçados ainda. Nesta altura acreditava que a minha aspiração de casar e ter uma família podia vir a ser satisfeita um dia. Todas as manhãs tomava o eléctrico numa grande praça muito perto da minha casa, para a qual dava, entre outros prédios, uma construção baixa encostada às muralhas e que servia de garagem. A essa hora estava todos os dias à porta da oficina um rapaz que lavava e limpava o seu carro e me olhava com insistência. Era moreno, com um ar finíssimo: nariz pequeno e direito, olhos negros, uma boca maravilhosamente bem desenhada e os dentes muito brancos. Parecia se muito com um actor americano de cinema muito em voga naquele tempo; foi isso que me chamou a atenção. Primeiro tomei o por uma pessoa de condição, porque estava bem vestido e tinha maneiras educadas e finas. Imaginei que o carro lhe pertencesse e ele fosse uma pessoa rica, um dos tais "cavalheiros respeitáveis" de que minha mãe tanto me falava. Por um lado ele atraiu me, mas pensava nele apenas quando o via; depois ia para o atelier e a sua lembrança saía me do espírito. Mas não é menos verdade que sem dar por isso e apenas por causa das suas olhadelas ele me tivesse seduzido, porque uma manhã em que eu, no passeio, esperava o eléctrico, ouvi que me chamavam de uma maneira parecida com a que se usa para chamar os gatos; voltei me e vi que ele me fazia sinais de dentro do carro. Com uma docilidade irreflectida da qual me admirava, não hesitei um instante em aproximar me. Ele abriu a porta. Ao entrar reparei que a mão que pousava sobre o vidro aberto era grossa e rude; as unhas estavam sujas e partidas e o indicador estava amarelecido pelo fumo do tabaco, como têm os homens que exercem profissões manuais. Nada disse e mesmo assim subi.
7 Talvez se deva atribuir ao estado de alma de uma pessoa que se via cumulada de favores e que deseja instintivamente pagar a sua dívida o facto de, a partir desse momento, eu ter deixado por completo de resistir, como fizera até aí, aos seus gestos amorosos cada vez mais audaciosos. Mas também é verdade – já o disse a propósito do nosso primeiro beijo – que eu me sentia pronta à entrega total, levada ao mesmo tempo por uma força suave e invencível, como acontece com o sono que, para vencer a nossa vontade consciente de não adormecer, nos obriga a dormir fazendo nos sonhar que estamos acordados tão bem que, abandonando nos a ele, estamos convencidos de que lhe resistimos. Recordo me com impressionante clareza de todas as fases da minha sedução, porque cada uma das conquistas de Gino foi ao mesmo tempo desejada e repelida por mim e porque cada uma delas me deu, ao mesmo tempo, prazer e remorsos. E também porque essas conquistas foram conseguidas com uma lentidão sabiamente premeditada, sem pressas nem impaciências. Gino procedia como um general que ocupa metodicamente um pais e não como um amante ardendo de desejos, e assim foi apossando se do meu corpo passivo, da boca até ao ventre. Tudo isto, porém, não impediu que mais tarde Gino se apaixonasse violentamente por mim e que a premeditação calculada desaparecesse para dar lugar, senão a um amor profundo, pelo menos a um poderoso desejo que nada saciava. Durante os nossos passeios de carro até ali ele tinha se limitado a beijar me a boca e o pescoço, mas uma certa manhã enquanto me beijava, senti os seus dedos agarrarem nos botões da minha blusa. Depois uma sensação de frescura no peito fez com que eu erguesse os olhos por cima do seu ombro para o espelho do pára brisas. Reparei então que um dos meus seios estava nu. Enchi me de vergonha, mas não tive coragem para me tapar. Foi o próprio Gino, num gesto rápido, que parecia secundar a minha atrapalhação, quem abotoou novamente a minha blusa. Esta delicadeza da sua parte comoveu me profundamente, deixando me ao mesmo tempo encantada e perturbada. No dia seguinte Gino repetiu o seu gesto. Desta vez o meu prazer aumentou e a minha vergonha diminuiu. A partir de então habituei me àquela manifestação do seu desejo e parece me que se ele deixasse de a repetir pensaria que tinha deixado de gostar de mim. Conversávamos com frequência do que seria a nossa vida depois de nos casarmos. Gino falava me também muito da sua família, que vivia na província, a qual não podia com justiça considerar se pobre, pois possuía algumas feiras de terra. Tenho a impressão de que – o que aliás é vulgar nos autênticos mentirosos – em dado momento ele começou a acreditar nas suas próprias mentiras. Certo que mostrava por mim uma forte atracção, e, visto que a nossa intimidade se tornava dia a dia cada vez maior, esse sentimento devia ao mesmo tempo tornar se mais sincero. Pela minha parte as suas palavras adormeciam os meus remorsos e davam me uma impressão de felicidade ingénua e completa que nunca mais depois disso voltei a conhecer.
8 Ajudava minha mãe o mais que podia, a fim de ganhar dinheiro, e deitava me sempre muito tarde. Nos dias em que não posava no atelier corria os armazéns com Gino, para escolher os móveis e as coisas para o enxoval. Tinha pouco dinheiro para gastar, o que tornava as minhas pesquisas mais atentas ainda e mais meticulosas. Pedia para ver objectos que sabia bem que não podia comprar, examinava os longamente, discutindo o preço com o vendedor; depois, mostrando pouco entusiasmo e prometendo voltar, saía sem nada comprar. Não notava que estas incursões cobiçosas pelas lojas. Este exame angustioso dos objectos que me estavam interditos me levavam a reconhecer, mau grado meu, como minha mãe tinha razão no que dizia: sem dinheiro não se tem direito à mais pequena felicidade. Depois da minha visita à moradia, foi a segunda vez que eu deitei os olhos sobre o paraíso da riqueza: vendo me excluída sem que tivesse culpa não me podia impedir de experimentar alguma amargura e me sentir perturbada. Mas como já o tinha feito na moradia, esforcei me no amor por esquecer a injustiça, este amor que era o meu único luxo e permitia que me sentisse igual a todas as outras mulheres mais ricas e com mais sorte do que eu. Depois de muitas discussões e muitas procuras, decidi me por fim a fazer as minhas compras: aquisições verdadeiramente modestas. Como o dinheiro não chegasse, comprei pagando em prestações mensais, um quarto completo, estilo moderno, quer dizer, uma cama de casal, uma cómoda com espelho fazendo de toucador, duas mesas de cabeceira, duas cadeiras e um armário. Eram coisas extremamente vulgares, feitas em série e de fabricação grosseira, mas a paixão que me inspiraram imediatamente estes pobres móveis era incrível. Tinha mandado caiar as paredes do quarto, pintar de novo as portas e as janelas e raspar o chão tão bem que o nosso quarto era uma ilha de asseio no oceano infecto da casa. O dia em que me levaram os móveis foi sem dúvida um dos mais belos da minha vida. Experimentava uma sensação de incredulidade à ideia de que possuía um quarto como aquele: limpo, claro, arrumado, cheirando a cal e a tinta; e esta incredulidade manifestava se num contentamento que me parecia inesgotável. Por vezes, quando tinha a certeza de que minha mãe não me observava, ia para o quarto, sentava me nos colchões da cama e ficava horas inteiras a olhar à minha volta. Não me mexia mais que uma estátua, e contemplava os móveis como se não acreditasse na sua existência, como se receasse que se evaporassem de um momento para o outro e só ficassem as paredes; levantava me às vezes para tirar o pó da madeira e puxava o lustro ternamente. Creio que se me tivesse deixado levar pelos meus sentimentos beijaria a mobília. A janela, sem cortinas, dava sobre um vasto pátio, muito sujo, rodeado de outras casas longas e baixas, como a minha. Tinha se a impressão de se olhar para um pátio de lazareto ou de prisão; mas naquela altura eu vivia em êxtase e já não via o pátio: sentia me tão feliz como se o quarto desse para um lindo jardim cheio de árvores.
9 Eu desejava que este casamento se efectuasse e que minha mãe se convencesse de que a minha maneira de pensar é que estava certa. Agarrava me à esperança de me casar com a sensação de jogar desesperadamente toda a minha vida numa só cartada. Mas sentia ao mesmo tempo, não sem amargura, que minha mãe vigiava os meus esforços e tentava fazer me soçobrar. Devo mencionar aqui mais uma vez que a maldita perfeição de Gino não se desmentia nem mesmo por ocasião dos preparativos para o casamento. Tinha dito à minha mãe que Gino ajudaria às despesas. Menti, porque até então Gino nem sequer tinha aludido a essa possibilidade. Fiquei, pois, ao mesmo tempo surpreendida e contente no dia em que Gino, sem que eu nada lhe tivesse pedido, me ofereceu uma pequena soma de dinheiro, para me ajudar. Desculpou se da mesquinhez da quantia, explicando me que não me podia dar mais, porque tinha urgência em mandar dinheiro aos seus. Quando hoje penso nesta dádiva não posso explicá la senão pela extraordinária fidelidade ao papel que decidira representar: fidelidade proveniente talvez do remorso de me enganar e do pesar de não poder casar comigo, como agora realmente desejava. Triunfante, tratei de pôr minha mãe ao corrente da oferta de Gino. Limitou se a observar que era uma soma bem miserável; apenas o necessário para me deitar poeira nos olhos sem se arruinar! Este foi na minha vida um período muito feliz. Encontrava me todas as noites com Gino, e amávamo nos onde era possível: sobre o assento de trás do carro, de pé, no canto escuro de uma rua solitária, no campo, num prado, ou ainda na moradia, no quarto de Gino. Uma noite em que ele me levou a casa, amámo nos no patamar, em frente da porta do apartamento, estendidos sobre os ladrilhos, no escuro. Outra vez possuímo nos no cinema, encolhidos nas últimas cadeiras, mesmo debaixo da cabina do operador. Gostava de me encontrar misturada com ele no meio da multidão, dos eléctricos e dos lugares públicos, porque as pessoas me comprimiam contra ele; aproveitava para colar todo o meu corpo ao seu. Experimentava constantemente a necessidade de lhe apertar a mão, de lhe passar os dedos pelos cabelos e de lhe fazer qualquer outra carícia, no sitio em que estivéssemos, mesmo na presença de terceiros, com a ilusão de que ninguém se apercebia. como sempre que se cede a uma paixão irresistível. Gostava infinitamente de amar: talvez eu gostasse mais do amor do que propriamente de Gino, e sentia me levada a praticá lo não somente pelo sentimento que experimentava por ele, mas também pelo prazer que sentia. Não pensava com certeza que poderia sentir o mesmo prazer com outro homem. Mas apercebia me de uma maneira obscura de que o nosso amor não podia explicar inteiramente o zelo, a habilidade e a paixão que punha nas minhas carícias. Isso tinha um carácter autónomo; era uma espécie de vocação que, de toda a maneira, mesmo sem as ocasiões que Gino me proporcionava, acabaria por manifestar se. Entretanto, a ideia do casamento era mais importante para mim que qualquer outra.
10 Quanto a Ricardo, estou convencida de que a ideia de uma união com Gisela nunca lhe tinha aflorado o espírito; a esta, bem mais experiente que eu, tinha se lhe metido em cabeça proteger me e educar me. Ela tinha – para resumir as coisas – sobre a vida e sobre a felicidade as mesmas ideias de minha mãe, salvo que na minha mãe estas ideias encontravam uma expressão amarga e violenta porque eram o fruto de decepções e privações, ao passo que em Gisela esta maneira de ver vinha da sua prática e fazia se acompanhar de uma grande suficiência e de uma grande profundidade. Minha mãe, num certo sentido, contentava se em enunciar essas ideias como se para ela a afirmação dos princípios contasse de antemão para a sua aplicação. Gisela, pelo contrário, tendo pensado sempre dessa maneira e não compreendendo que alguém pensasse diferentemente, admirava se de que eu não me comportasse exactamente como ela. E foi apenas quando, apesar dos meus esforços em contrário, deixei transparecer a minha desaprovação, que o seu espanto se transformou em cólera e ciúme. Gisela compreendeu de súbito que eu não me limitava a recusar as suas lições e a sua protecção, mas ia mais longe, e a condenava do alto das minhas aspirações afectuosas e desinteressadas. Foi então que nasceu no seu espírito, talvez inconscientemente, o desejo de anular essa condenação, tornando me igual a ela. Enquanto isso não acontecia, não cessava de me repetir que eu era completamente parva em levar esta vida de sacrifícios só para me manter honesta; que era uma dor de alma ver me tão mal vestida; que, se eu quisesse, com a minha beleza poderia mudar por completo de existência. Acabei por me envergonhar de a deixar convencida de que nunca tinha conhecido qualquer homem e por lhe contar as minhas relações com Gino, informando a ao mesmo tempo de que estávamos noivos e nos casaríamos brevemente. Ela perguntou me imediatamente o que ele fazia, e quando soube que era chauffeur franziu depreciativamente o nariz. Mas nem por isso deixou de me pedir que lho apresentasse. Gisela era a minha melhor amiga e Gino o meu noivo. Hoje estou à altura de os julgar friamente, mas naquele tempo a minha cegueira perante os seus caracteres era completa. Quanto a Gino, já disse que o achava perfeito. No que diz respeito a Gisela, talvez notasse os seus defeitos, mas em compensação julgava que ela tinha um grande coração e uma grande afeição por mim, porque atribuía a sua solicitude pela minha sorte não ao despeito por me achar inocente e ao desejo de me corromper, mas a uma bondade mal compreendida e fora de propósito. Tanto assim que os apresentei, não sem apreensão; na minha ingenuidade, eu tinha querido que eles se fizessem amigos. A apresentação foi numa leitaria. Gisela durante todo o tempo mostrou uma atitude claramente hostil. Pelo lado de Gino, acreditei de princípio que ele quisesse seduzir Gisela, porque, seguindo o seu hábito, encaminhou a conversa para o assunto da moradia e alongou se a exaltar a riqueza dos patrões, como se esperasse dissimular assim a classe medíocre da sua condição.
11 Estávamos no Verão de S. Martinho e os dias eram tépidos e límpidos. Gisela disse me um dia que anuíra a fazer uma pequena viagem de automóvel: ela, Ricardo e um seu amigo. Precisava se de outra senhora para fazer companhia ao amigo e tinham pensado em mim. Aceitei com alegria, porque na mesquinhez da minha vida estava sempre à espreita de tudo o que me pudesse torná la menos insípida. Disse a Gino que era obrigada a fazer um trabalho extraordinário, e de manhã, pontualmente, eu estava no local marcado, que era do outro lado da ponte Milvio. O carro já me esperava, e quando me aproximei nem Gisela nem Ricardo, sentados no banco da frente, se mexeram, mas o amigo de Ricardo saltou em terra e veio ao meu encontro. Era um homem novo, de meia estatura, calvo, a cara amarelenta, com grandes olhos pretos, um nariz aquilino e uma boca larga, com as comissuras dos lábios parecendo sorrir. Estava vestido com elegáncia, mas num estilo diferente do de Ricardo, um estilo clássico: casaco cinzento escuro, calças de um cinzento mais claro, colarinho engomado e gravata preta com uma pérola. Tinha uma voz doce. Os olhos também me pareceram doces, mas igualmente melancólicos e como que entristecidos. Era extremamente cortês, mesmo cerimonioso. Gisela apresentou mo dando lhe o nome de Estevão Astárito e tive logo a convicção de que se tratava do senhor distinto cujas galantes propostas ela me tinha transmitido. Mas não fiquei contrariada por travar este conhecimento, porque no fundo achava que as suas propostas nada tinham de ofensivo: lisonjeavam me mesmo, num certo sentido. Estendi lhe a mão; levou a aos lábios com uma devoção estranha, de uma intensidade quase dolorosa. Depois subi, ele sentou se ao meu lado e o carro arrancou. Enquanto o automóvel rolava por entre campos amarelecidos, sobre uma estrada nua e inundada de sol, não falámos quase nada. Eu estava feliz por andar de automóvel, feliz por dar um passeio, feliz pelo ar que passava atrás da janela e me batia em cheio no rosto. Era talvez a segunda ou terceira vez na minha vida que eu dava um passeio longo de automóvel e tinha receio de não o desfrutar bastante; escancarava os olhos procurando observar o maior número possível de coisas: molhos de palha, quintas, árvores, campos, colinas, bosques. Pensava que passariam meses, talvez anos, antes que eu pudesse dar um passeio igual, que tinha que gravar todos os pormenores na memória de maneira a possuir uma recordação precisa que lembraria sempre que quisesse. Mas Astárito, afastado, muito direito, não parecia ter olhares senão para mim. Os seus olhos melancólicos e cheios de desejo não largavam por um instante a minha cara e o meu corpo; realmente o seu olhar dava me a sensação de um dedo que ele passasse lentamente sobre toda a minha pessoa. Não direi que esta atenção me desgostasse, mas embaraçava me. Pouco a pouco senti me no dever de me ocupar dele e de lhe falar. Estava sentado com as mãos sobre os joelhos; num dos dedos brilhava, com uma aliança, um anel ornado com um brilhante.
12 Este sentimento de inevitável sujeição revelou me de repente um aspecto do meu carácter até aí completamente desconhecido para mim. Eu sabia, com absoluta certeza, que devia recusar esse dinheiro, mas ao mesmo tempo sentia que o desejava aceitar. E isto não tanto por avidez como pelo raro e novo prazer que o facto dava à minha alma. Apesar de firmemente resolvida a aceitar a nota, fingi recusá la, num gesto de puro instinto. Astárito insistiu, sem deixar de me fitar nos olhos. Então passei a nota da mão esquerda para a direita. Sentia me tomada por uma estranha excitação que me fazia corar e me dificultava a respiração. Se nesse momento Astárito tivesse podido adivinhar o que se passava em mim, talvez tivesse pensado que o amava. Ora nada era menos verdadeiro; era somente o dinheiro, o modo como me tinha sido dado e o motivo dessa dádiva que actuavam sobre o meu espírito. Senti Astárito pegar me na mão e levá la aos lábios. Deixei o beijá la e depois retirei a. Não voltámos a olhar um para o outro até à nossa chegada a Roma. Logo que chegámos à cidade separámo nos rapidamente uns dos outros, como se cada um de nós tivesse a consciência de ter cometido um crime e quisesse esconder se. A verdade é que nesse dia todos nós tínhamos cometido qualquer coisa que podia considerar se um crime: Ricardo, por estupidez, Gisela, por inveja, Astárito, por luxúria, e eu, por inexperiência. Ricardo desejou me boas noites. Astárito, grave e comovido, não teve coragem senão para me apertar silenciosamente a mão. Tinham me levado a casa, e, apesar da minha fadiga e dos meus remorsos, lembro me de que não me foi possível evitar um sentimento de vaidosa satisfação ao descer deste belo carro diante da porta, perante os olhares da família do ferroviário que ocupava a casa do lado e que nos espreitava por uma janela. Corri para o meu quarto e a primeira coisa que fiz foi olhar para o dinheiro. Descobri que não era apenas uma, mas sim três notas de mil, e durante momentos, sentada na borda da minha cama, senti me feliz. Este dinheiro, além de chegar para pagar o que eu ainda devia dos móveis, permitia me comprar outras coisas de que precisava. Como nunca tinha tido em meu poder uma tal importância, não me fartava de olhar para o dinheiro. A minha pobreza fazia com que a sua existência fosse não só agradável mas inacreditável. Tive de olhar longamente para as notas, como já sucedera com os móveis, para conseguir acreditar que me pertenciam. O meu longo e profundo sono dessa noite pareceu me ter desvanecido a recordação da minha aventura de Viterbo. No dia seguinte, acordei tranquila, decidida a prosseguir com a mesma perseverança nas minhas aspirações de possuir uma vida e uma família normais. Gisela, que vi nessa mesma manhã, quer fosse por remorsos quer, como era mais provável, por discrição, bem compreensível, não me fez a menor alusão ao nosso passeio e eu fiquei lhe reconhecida por isso. A ideia de tornar a encontrar me com Gino angustiava me e enchia me de ansiedade.
13 Enquanto esperava, tinha pago todas as prestações dos meus móveis e pusera me a trabalhar mais que nunca para ganhar mais dinheiro para pagar o meu enxoval. De manhã posava no atelier e à tarde fechava me no grande quarto com minha mãe para trabalhar até à noite. Ela cosia à máquina junto da janela, e eu, sentada à mesa, ao pé dela, cosia à mão. Minha mãe tinha me ensinado a trabalhar em roupa interior, no que eu desde o princípio me mostrara muito jeitosa e rápida. Havia sempre uma quantidade de casas para fazer e uma letra a bordar em cada camisa; eu fazia as letras particularmente bem, duras e tão em relevo que pareciam sair do tecido. A roupa interior para homem era a nossa especialidade, mas às vezes acontecia ter de confeccionar qualquer camisa ou combinação ou cuecas de mulher, sempre coisas vulgares, não só porque minha mãe não seria capaz de fazer coisas delicadas, mas também porque não conhecia senhoras que lhe fizessem encomendas. Quando cosia, o meu espírito perdia se em divagações sobre Gino, o casamento, o meu passeio a Viterbo, minha mãe – a minha vida, em suma, – e o tempo passava depressa. O que pensava minha mãe nunca o soube, mas era bem certo que o seu cérebro estava ocupado, porque, enquanto trabalhava à máquina, tinha de tempo a tempo uma expressão furiosa, e se eu lhe falava nessa altura respondia me mal. Para a noite, quando começava a escurecer, eu limpava o vestido de linhas e, pondo o meu fato mais bonito, ia ter com Gisela ou Gino, quando estava livre. Hoje pergunto a mim própria se seria feliz nesse tempo. Num certo sentido era, porque desejava ardentemente qualquer coisa que considerava próxima e possível. Aprendi depois que a verdadeira infelicidade vem quando, já não há esperança; torna se então inútil passar bem ou mal e de nada se precisa. Mais de uma vez, no decurso deste período, apercebi me de que Astárito me seguia na rua. Ia para o atelier de manhã muito cedo. Habitualmente Astárito, imóvel, num vão de escada, no outro lado da rua, esperava que eu saísse. Nunca atravessava e enquanto eu me encaminhava rapidamente para a praça. junto das casas, ele limitava se a seguir me do outro lado, mais devagar, junto das muralhas. Julgo que me observava e isso bastava lhe: era bem a imagem de um homem perdidamente apaixonado. Quando eu chegava à praça, ele ia postar se na paragem do eléctrico fronteira àquela em que eu estava. Continuava a observar me, mas se eu deitava uma olhadela para o seu lado isso bastava para que disfarçasse e olhasse para a frente, fingindo interessar se pela chegada do meu eléctrico. Nenhuma mulher teria ficado indiferente perante um amor como aquele; embora firmemente decidida a não lhe tornar a falar, experimentava por vezes uma espécie de compaixão lisonjeada. Depois Gino chegava no carro, ou às vezes no eléctrico. E quando eu subia, fosse para o automóvel, fosse para o eléctrico, Astárito ficava no seu refúgio a ver afastar me. Uma dessas tardes, quando vinha jantar, entrei na sala grande e encontrei Astárito, de pé, o chapéu na mão, apoiado à mesa e conversando com minha mãe.
14 Os dois homens desapareceram no gabinete e fiquei de novo só. O que mais me impressionou no decurso desta breve aparição de Astárito foi a diferença entre os seus modos de agora e os que tivera durante o nosso passeio a Viterbo. Tinha o visto nessa altura embaraçado, convulso, mudo, trémulo; agora aparecera me extremamente senhor de si mesmo, cheio de presença, com um ar de superioridade ao mesmo tempo autoritária e discreta. Até mesmo a voz mudara. Durante o passeio falara me em voz baixa, quente e estrangulada, e a sua voz enquanto falava à senhora do véu tinha um timbre claro, frio, amável e tranquilo. Estava vestido de cinzento escuro, como de costume, com um alto colarinho de goma que dava à sua cabeça qualquer coisa de fixo; mas agora o fato e os colarinhos que eu notara no decurso do passeio sem me impressionar pareciam me inteiramente de harmonia com o lugar: os móveis, maciços e severos, as vastas proporções da sala, o silêncio e a ordem que reinavam ali era como se tudo fosse um uniforme. "Gisela tinha razão – pensava eu de novo, – este deve ser realmente uma personagem de marca; só o amor pode explicar os seus modos embaraçados e o sentimento constante de inferioridade nas suas conversas comigo". Estas observações fizeram me esquecer a minha primeira atrapalhação, e quando, ao fim de alguns minutos, a porta se abriu para deixar sair o velho, sentia me suficientemente segura de mim. Desta vez, porém, Astárito não apareceu à porta para me convidar a entrar. Uma campainha retiniu, um contínuo entrou no gabinete de Astárito, fechando a porta atrás dele, reapareceu, aproximou se de mim e, informando se do meu nome em voz baixa, disse me que podia entrar. Levantei me e avancei sem pressa. O gabinete de Astárito era uma sala quase tão grande como a antecâmara. Esta sala estava vazia, à parte um divã e dois fauteuils de couro num canto, e noutro canto uma mesa atrás da qual Astárito estava sentado. Por duas janelas veladas por cortinas brancas entrava na sala um dia frio, sem sol, silencioso e triste, que me fez pensar na voz de Astárito a falar com a senhora do véu. Havia um grande tapete no chão e dois ou três quadros nas paredes. Lembro me de que um deles representava um prado verde que se estendia até à linha do horizonte limitado por montanhas rochosas. Astárito, como já disse, estava sentado à mesa; quando entrei, levantou os olhos de uns autos que estava a ler ou fingindo que lia. Eu disse "fingindo" porque tive logo a seguir a certeza de que era uma comédia com o fim de me intimidar e de me fazer sentir a sua autoridade e a sua importância. Com efeito, quando me aproximei da mesa vi que a folha que examinava com tanta atenção não continha mais que três ou quatro linhas rabiscadas à pressa. De mais a mais, a mão em que apoiava a testa e que segurava o cigarro aceso com dois dedos revelava a sua perturbação por uma tremura bem visível. Esta tremura tinha feito mesmo cair um pouco de cinza sobre a folha que ele lia com uma atenção muito marcada e cheia de artifício.
15 Pode ser que esta maneira de sentir pareça fraca depois de uma traição como a de Gino. Mas cada vez que eu era ofendida – e lembro me de o ser muitas vezes pela minha pobreza, a minha inocência e o meu isolamento – experimentava sempre o desejo de desculpar o ofensor e esquecer o agravo o mais depressa possível. Se a ofensa determina em mim qualquer mudança, essa mudança não se manifesta nem na minha atitude nem no meu aspecto exterior: actua mais profundamente na minha alma, que se fecha mais, tal como uma carne sã com uma boa circulação sanguínea consegue por si, depois do ferimento, cicatrizar mais depressa. Mas as cicatrizes ficam: e as mudanças, embora inconscientes, da alma são sempre definitivas. Foi o que me aconteceu com Gino. Não senti nem sequer um momento de rancor contra ele, mas compreendi que em mim própria muitas coisas se tinham subvertido e quebrado para sempre: a minha estima por ele, a minha esperança de arranjar uma família, a minha vontade de não ceder nem a Gisela nem a minha mãe, a minha fé religiosa, ou pelo menos o género de fé que tivera até ali: comparei me a uma das minhas bonecas do tempo em que eu era rapariguinha: depois de as ter amachucado e martirizado durante todo o dia, a sua cara risonha e rosada ficava intacta e eis que um ruído de molas partidas vinha de dentro do seu corpo, com um chocalhar de mau agouro. Virava as de cabeça para baixo, e então, pelo pescoço, via cair fragmentos de porcelana, as molas e as peçazinhas do mecanismo que as faziam falar, mexer os olhos, e também misteriosos bocadinhos de madeira e de fazenda dos quais nunca consegui descobrir a utilidade. Aturdida mas tranquila, entrei em casa e fiz de tarde as mesmas coisas que habitualmente executava, sem dizer a minha mãe o que se tinha passado, não lhe confiando as conseqüências que esse facto me traria. Apercebi me de que era impossível levar a dissimulação ao ponto de trabalhar no meu enxoval como nos outros dias; pegando nas peças prontas e nas que ainda tinha por acabar fui fechá las à chave no armário do meu quarto. Minha mãe notou a minha tristeza, coisa rara em mim, que sou por hábito estouvada e alegre; mas disse lhe que estava fatigada e era verdade. Ao entardecer, enquanto minha mãe cosia à máquina, larguei a minha costura, fui para o meu quarto e estendi me em cima da cama. Reparei que olhava os meus móveis já pagos, e por mim, graças ao dinheiro de Astárito, com olhos bem diferentes dos de outrora, sem alegria e sem esperança. Não sentia dor, mas simplesmente a lassidão e a indiferença que se experimentam depois de um grande esforço completamente inútil. De resto estava fisicamente cansada; tinha os membros partidos. Invadiu me um grande desejo de repousar. Pensando vagamente nos meus móveis e na impossibilidade de agora em diante os usar como esperava, adormeci quase a seguir, deitada vestida sobre a minha cama. Dormi talvez umas quatro horas, com avidez, com um sono que me pareceu triste e sombrio; acordei muito tarde; chamei minha mãe com voz forte, do fundo da obscuridade que me rodeava.
16 Ela obedeceu. Sentando se na cama começou por me tirar os sapatos e as meias, que atirou para uma cadeira aos pés da cama. Depois despiu me o vestido e a combinação e ajudou me a vestir a camisa de dormir. Eu conservava os olhos fechados. Depois de estar debaixo da roupa, enrolei me, puxei o lençol e tapei a cabeça com ele. Ouvi minha mãe dar me as boas noites do limiar da porta depois de ter apagado a luz, mas não lhe respondi. Adormeci de novo e dormi toda a noite e até a uma hora avançada do dia. Nessa manhã devia ir ao meu encontro habitual com Gino; mas ao acordar apercebi me de que não desejava vê lo enquanto a minha dor não tivesse passado, enquanto não estivesse em estado de considerar a sua traição com objectividade e desprendimento, como se fosse um facto sucedido, não a mim, mas a qualquer outra pessoa. Desconfiava, e continuei sempre a desconfiar, das coisas que se fazem e se dizem sob um impulso de um sentimento, e em particular (era o meu caso) quando esse sentimento não era de simpatia e de amizade. Com toda a certeza que já não gostava de Gino; mas não queria odiá lo, porque pensava que juntaria ao prejuízo que ele me causara com a sua traição um sentimento desagradável que me mancharia a alma e seria indigno de mim. Nessa manhã, de resto, experimentava uma estranha preguiça, quase voluptuosa, e sentia me menos triste que na noite anterior. Minha mãe saíra muito cedo e eu sabia que não voltaria antes do meio dia. Deixei me ficar debaixo da roupa: foi o primeiro prazer ao iniciar esta nova fase da minha vida, que eu queria unicamente agradável. Para mim, que me tinha levantado muito cedo durante toda a minha vida, mandriar na cama deixando o tempo correr era um verdadeiro luxo. Durante muito tempo privara me dele; mas agora estava bem decidida a fazê lo sempre que me apetecesse. E pensava que assim seria com todas as coisas às quais a minha pobreza e os meus sonhos de vida regular e familiar me tinham até então obrigado a renunciar. Imaginava que amava o amor, que amava o dinheiro, que amava as coisas que se podem obter com ele; e de ora em diante todas as vezes que se me proporcionasse ocasião não me privaria nem do amor, nem do dinheiro, nem das coisas que com o dinheiro pudesse obter. Não se julgue, porém, que pensava nestas coisas enraivecida, por ressentimento ou por espírito de vingança. Muito pelo contrário, pensava nelas com doçura; acalentava a ideia com alegria. Todas as situações, mesmo as mais desagradáveis, tem o seu lado bom. Perdera, de momento pelo menos, o casamento e as modestas vantagens que prometera a mim própria, mas em compensação readquirira a liberdade. É verdade que as minhas aspirações mais íntimas não tinham mudado; mas a vida fácil agradava me muito, e a imagem desta perspectiva escondia o que representava de tristeza e de resignação nas minhas novas decisões. Os sermões da minha mãe e de Gisela começavam a produzir os seus frutos. Sempre, mesmo levando uma vida virtuosa, eu sabia que bastava querer para que a minha beleza me proporcionasse tudo o que eu desejasse.
17 Sempre gostei de descer à rua à hora do passeio, ao pôr do Sol, caminhar lentamente olhando as montras iluminadas e ver a noite escurecer lentamente o céu e os telhados. Sempre apreciei seguir por entre a multidão, ouvir, sem me voltar, as ofertas de amor que os transeuntes, os mais imprevistos. numa súbita exaltação dos sentidos, se atreviam a murmurar me às vezes; sempre gostei de subir e descer a mesma rua até à saciedade, ficar sem forças mas continuar com espírito ainda ávido e fresco como numa feira, onde as surpresas nunca se esgotam. O meu salão, o meu restaurante, o meu café, foram sempre a rua. Suponho que o facto de ter nascido pobre deve ter tido influência nestas minhas predilecções; sabe se que os pobres se divertem com pouco dinheiro, repassando os olhos pelas montras das lojas, onde nada podem comprar, e as fachadas das belas casas, onde nunca morarão. Deve ser pelo mesmo motivo que amei sempre as igrejas, tão numerosas em Roma, abertas para o povo e luxuosas para todos e onde, por entre mármores, ouros e decorações preciosas, o cheiro acre e humilde da pobreza é, por vezes, mais forte do que o do incenso. Naturalmente os ricos não passeiam pelas ruas, não vão à igreja: quando muito atravessam a cidade de automóvel, recostados sobre almofadas e lendo o jornal. Preferindo a rua a qualquer outro lugar, interditei a mim mesma os encontros nos sítios que Gisela me marcaria – em troca dos meus gostos mais predilectos. Este sacrifício nunca o quis fazer; todo o tempo que durou a minha camaradagem com Gisela o assunto foi objecto de discussões encarniçadas. Gisela não gostava da rua; as igrejas nada lhe diziam; a multidão só lhe inspirava repugnância e desprezo. O que ela mais apreciava eram os restaurantes de luxo, onde os criados espiam com ansiedade os mais simples gestos dos seus clientes, os dancings modernos, com músicos de uniforme e dançarinos de fato de noite. Nestes lugares, ela ficava outra; os seus gestos, as suas atitudes, até a sua voz mudavam. Fingia ser uma mulher bem; era o fim que almejava e que conseguiu mais tarde até certo ponto, como se poderá ver. O aspecto curioso do seu sucesso final foi que a pessoa destinada a satisfazer as suas ambições não a encontrou nos locais de luxo, mas graças a mim e precisamente na rua, que ela odiava tanto. Na pastelaria encontrei Gisela acompanhada por um homem de meia idade, um caixeiro viajante, que me apresentou com o nome de Jacinto. Sentado, parecia ter uma altura normal, porque tinha os ombros largos, mas de pé parecia quase anão, e a largura de ombros ainda o tornava mais baixo. Tinha o cabelo espesso e branco como prata, que usava em escova sobre a testa, talvez para parecer mais grave, um rosto encarnado, cheio de saúde, com traços nobres e regulares de estátua, uma bela testa serena, grandes olhos pretos, nariz direito e a boca bem desenhada. Mas uma expressão antipática de vaidade, de suficiência e de falsa benevolência tornava esta cara, agradável e majestosa à primeira vista, bastante repulsiva.
18 Sabia que no dia seguinte, à tarde, os meus actos lhe abririam melhor os olhos que quaisquer palavras. Reconheci que era uma maneira brutal de lhe revelar a grande mudança que se operara na minha vida; mas o que me agradava era que desta maneira evitaria uma quantidade de explicações, de reflexões e de comentários: pelo menos todo o género de explicações, de reflexões e de comentários em que Gisela se mostrara pródiga quando lhe contara a traição de Gino. Na realidade eu experimentava uma espécie de repugnância em falar no casamento; desejava falar nele o menos possível e preparar as coisas de maneira que os outros não me tocassem no assunto. No dia seguinte, para que minha mãe não me aborrecesse se suspeitasse de alguma coisa, fingi ter um encontro com Gino e passei toda a tarde fora. Para o meu casamento mandara fazer um fato de saia e casaco cinzento, que contava vestir depois da cerimónia. Era o meu vestido mais bonito: hesitei em pô lo, mas pensei que acabaria por estreá lo um dia, que não seria nem mais puro nem mais feliz; que, por outro lado, os homens julgam pelas aparências e que era preciso apresentar me o melhor possível para obter mais proventos: afastei todos os escrúpulos. Vesti o pois, mas não sem remorsos – o meu lindo vestido, que, recordando o agora, era bem modesto e bastante feio, como todos os meus fatos de então, – penteei me com cuidado e pintei me, mas não mais do que o costume. A propósito deste último pormenor, observo que nunca percebi a razão por que as mulheres da minha profissão pintam a cara como se fossem máscaras de Carnaval. Porque a vida que levam as torna muito pálidas? Talvez porque julguem que se não se pintarem desta maneira violenta não chamam a atenção dos homens e não mostram que são fáceis de abordar? Eu, por mais que me fatigue e me deite tarde, tenho sempre a pele morena e sã, e posso dizer, sem falsa modéstia, que a minha beleza bastou sempre, sem pintura, para fazer voltar os homens quando passo na rua. Não é pelo rouge nem pelo louro do trigo que eu chamo a atenção dos homens, mas – muitos mo têm dito – pela serenidade e pela doçura do meu rosto, pelo sorriso que mostra os meus dentes perfeitos e pelo sedoso dos meus cabelos castanhos e ondulados. As mulheres que descoloram o cabelo e se pintam não reparam que os homens dão se conta no primeiro momento de como elas são e experimentam uma espécie de antecipada desilusão. Eu, tão natural e simples, deixei lhes sempre uma dúvida sobre a minha verdadeira personalidade, dando lhes desta maneira a ilusão de uma aventura que eles procurassem mais do que a pura satisfação dos sentidos. Uma vez vestida e arranjada, fui ao cinema e vi passar duas vezes a mesma fita. Quando saí do cinema era já noite; fui directamente à pastelaria onde tinha marcado encontro com Gisela. A casa não era uma daquelas leitarias modestas onde habitualmente nos encontrávamos com Ricardo, mas uma pastelaria elegante, onde eu punha os pés pela primeira vez. Compreendi que a escolha deste local fora feita com a intenção de elevar o preço dos meus favores.
19 Mordia este pão, deitava vinho no copo com a outra mão e bebia o sem ter acabado de mastigar. Tudo isto estalando os lábios, rolando os olhos, sacudindo a cabeça de vez em quando como um gato às voltas com um pedaço demasiado grande. Mas para contrabalançar, ao contrário do que era habitual, eu não tinha fome. Era a primeira vez que me preparava para me deitar com um homem que não amava, que até mesmo não conhecia; e olhava o com atenção, estudando os meus sentimentos e procurando imaginar como me sairia. Mais tarde deixei de dar atenção aos homens com quem ia, porque, levada pele necessidade, aprendi depressa a encontrar ao primeiro olhar o lado bom ou atraente do homem, suficiente para tornar a sua intimidade suportável. Mas nessa noite, este expediente da minha profissão, que consiste em descobrir num só olhar o que torna menos desagradável um amor venal, não o tinha ainda aprendido; procurava o instintivamente, sem dar por isso. Já disse que Jacinto não era feio; até mesmo quando se calava e não mostrava os seus pontos antipáticos, até poderia parecer belo. Já era muito, porque, apesar de tudo, todo o amor é em grande parte comunhão física. Mas isso não me bastava. Nunca pude, já não digo amar, mas simplesmente suportar um homem só pelas suas qualidades físicas. Ora, quando a refeição acabou e Jacinto, acalmada a sua extraordinária voracidade, arrotou uma ou duas vezes e recomeçou a falar, apercebi me de que nada havia nele, ou pelo menos não era capaz de descobrir, absolutamente nada, por pouco que fosse, que mo tornasse simpático. Não só, como Gisela me avisara, só dele falava, mas fazia o de uma maneira desagradável, vaidosa e aborrecida, contando a maior parte do tempo coisas que nada o honravam e confirmavam plenamente a minha primeira impressão de repugnância. Nada havia nele, absolutamente nada, que me agradasse; e todos os traços que apresentava como qualidades, de que se envaidecia e punha a nu, pareciam me horríveis defeitos. Só muito raramente encontrei, daí em diante, homens no mesmo género, que não têm valor algum e nada oferecem de bom a quem se aproximar para neles encontrar qualquer simpatia; sempre me admirou que eles existissem e muitas vezes perguntei a mim própria se não seria minha a culpa, incapaz de descobrir as qualidades que eles sem dúvida haviam de ter. Seja como for, com o tempo habituei me a estes desagradáveis companheiros e fingi rir e chalacear com eles, em suma, ser aquilo que queriam que eu fosse e julgavam que era. Mas nessa noite esta primeira descoberta inspirou me reflexões bem melancólicas. Enquanto Jacinto tagarelava esgaravatando os dentes com um palito, eu pensava que era um duro ofício aquele que eu escolhera, de fingir transportes amorosos com certos homens que na realidade – era o caso de Jacinto – me inspiravam sentimentos bem diferentes; que não havia dinheiro que pagasse esses favores; que era impossível – pelo menos em casos semelhantes – portar me como Gisela, que não pensava senão no dinheiro e não o ocultava.
20 Manifestou o mesmo zelo introduzindo todos os dias pequenas mudanças da mesma ordem na nossa vida quotidiana: tanto assim que me preparou uma grande panela de água quente para me lavar ao levantar, pôs flores numa jarra no quarto e assim por diante. Jacinto dava me sempre a mesmo soma de dinheiro e eu, sem dizer nada a minha mãe, ia a depositando no fundo de uma gaveta, numa caixa onde até agora ela guardara as suas economias. Ficava com pouco dinheiro para mim. Imaginava que ela já se tinha apercebido destas adições diárias ao nosso património, mas nunca trocámos uma única palavra a tal respeito. Durante a minha vida pude observar que mesmo aqueles cujo dinheiro tem uma origem lícita não gostam de falar nisso, não só com estranhos, mas até mesmo com os íntimos. Sem dúvida liga se ao dinheiro um sentimento de vergonha ou talvez de pudor que o risca das conversas normais e se relega para o plano das coisas secretas inconfessáveis, nas quais não se deve falar. Como se, qualquer que seja a sua origem, ele fosse sempre mal adquirido. Talvez também ninguém goste de mostrar o sentimento que o dinheiro suscita na sua alma: um sentimento muito forte, quase sempre inseparável de uma sombra de culpa. Numa dessas noites, Jacinto exprimiu o desejo de dormir comigo no meu quarto, mas eu, com o pretexto de que os vizinhos notariam a sua presença de manhã, quando ele saísse, não consenti. Na realidade, depois da primeira noite, a nossa intimidade não avançara; mas não por minha culpa. Até ao dia da nossa separação continuou a portar se exactamente como na primeira noite. Era na verdade um homem de valor nulo ou quase nulo na intimidade, e tudo o que eu podia sentir por ele já o sentira na primeira noite, enquanto dormia. A ideia de dormir com um homem assim repugnava me; depois receava que me aborrecesse, porque tinha a certeza de que me obrigaria a estar acordada uma parte da noite para me fazer confidências e falar me dele. No entanto, ele não se apercebeu nem do meu aborrecimento nem da minha antipatia e partiu convencido de ter sido, durante aqueles dias, extraordinariamente simpático. Chegou o momento do meu encontro com Gino. Aconteceram tantas coisas no decurso destes dez dias que eu tinha a impressão de que se tinham passado cem anos depois do tempo em que o via antes de ir para o atelier a fim de ganhar dinheiro e montar a minha casa e me considerava como uma noiva prestes a casar se. Ele foi pontual e chegou à hora que lhe tinha marcado; quando subi para o carro, tive a impressão de que ele estava extremamente pálido e parecia atrapalhado. Ninguém gosta de sentir que se lhe atira à cara uma traição, mesmo o traidor mais corajoso; ao longo destes dez dias de interrupção das relações habituais ele deve ter reflectido muito e feito muitas suposições. Todavia, eu não mostrava qualquer ressentimento, e verdadeiramente não necessitava de fingir, porque o meu espírito estava tranquilo; passada a primeira dor da desilusão, a minha alma inclinava se para uma espécie de indulgente e céptica afeição.
21 E como antigamente, e até mesmo pior, a despeito do sacrifício da minha honra, sentia me pobre e pensava com angústia na insegurança do dia de amanhã. Sou de natureza alegre e calma; esta inquietação nunca tomou em mim um carácter de obsessão, como noutras pessoas menos equilibradas e menos indiferentes. Mas estava na minha consciência obscura como um verme de um velho móvel; advertia me constantemente de que eu estava desprovida de tudo, que não podia esquecer esta precária condição e descansar, nem melhorar definitivamente com a profissão que escolhera. Aquela que nada sentia, ou pelo menos parecia não sentir qualquer inquietação, era minha mãe. Dissera lhe logo que não era necessário que desperdiçasse a sua vida cosendo o dia inteiro. Como se toda a vida ela não esperasse outra coisa que esta advertência, abandonou imediatamente a maior parte do trabalho e limitou se à execução desinteressada de uma ou outra encomenda, mais para passar o tempo que pelo desejo de ganhar alguma coisa. Era como se o esforço de todos estes anos, a começar no tempo em que eu era rapariga e servia uma família como criadinha, se afundasse bruscamente sem deixar resíduos e sem remédio, à maneira das velhas casas que logo que se desmoronam desaparecem, entram em si próprias, se bem que não tenham uma única parede de pé; nada fica senão um montão de poeira. Para uma pessoa como minha mãe, o dinheiro queria dizer comer e descansar até à saciedade. Comia mais que nunca e permitia se pequenos luxos que na sua ideia distinguiam os ricos dos pobres: levantar se tarde, dormir depois do almoço, passear de vez em quando. Devo dizer que o efeito que produziu nela esta mudança de hábitos foi talvez o lado mais desagradável da minha nova vida. Sem dúvida, os que estão habituados a trabalhar nunca deviam parar: o descanso, o bem estar, mesmo de uma origem boa e lícita – não era porém o caso –, corrompem nos. Ao mesmo tempo que a nossa situação melhorava, minha mãe engordava, ou, para ser mais exacta, dada a rapidez com que desapareceu a sua magreza ofegante e angulosa, ela inchava de uma forma doentia e de uma maneira que me pareceu significativa, embora isso não me surgisse com clareza. As suas ancas agudas arredondaram se, os ombros secos cobriram se, as faces, que sempre foram cavadas, encheram se e refloriram como se tivessem sido assopradas. Mas o pormenor mais triste da sua transformação física foram os olhos. Outrora grandes e dilatados, com uma expressão excitada e inquieta, reflectiam agora uma luz equívoca e ambígua. Tinha engordado, mas sem beleza nem rejuvenescimento. Parecia me que era ela quem trazia no corpo e na cara a marca visível da nossa mudança de vida; nunca a podia olhar sem experimentar um sentimento penoso misturado de remorso, compaixão e repugnância. Ela aumentava o meu mal estar assumindo atitudes de gulosa e feliz satisfação. Na realidade, rejubilava por não ser forçada a trabalhar e estas atitudes eram as de uma mulher que durante toda a sua vida nunca comera nem descansara o suficiente.
22 Dos jovens, gostava dos corpos compridos, magros, ainda adolescentes, os gestos desajeitados, a timidez, os olhos acariciadores, os lábios e os cabelos cheios de frescura. Dos homens maduros, gostava dos braços musculosos, largos peitos, um não sei quê de maciço e de possante que a virilidade empresta aos ombros, ao ventre e às pernas; por fim até mesmo os velhos me agradavam, pois o homem não é, como a mulher, escravo da idade; até na velhice eles conservam um encanto particular. O facto de mudar todos os dias de amante permitia me distinguir à primeira vista qualidades e defeitos com a precisão e a penetração de observação que só a experiência permite adquirir. Além disso, o corpo humano era para mim uma fonte inesgotável de um prazer misterioso e nunca saciado; mais de uma vez me surpreendi a acariciar com os olhos ou a tocar com as pontas dos dedos os membros dos meus companheiros de uma noite, com se quisesse, para além das superficiais relações que nos uniam, penetrar o sentido do seu interesse por mim e explicar a mim própria por que motivo me atraíam tanto. Mas procurava esconder esta atracção o mais que podia, porque estes homens, na sua vaidade sempre desperta, podiam tomá la por amor e imaginar que me apaixonara por eles, quando na realidade o amor – pelo menos como eles o entendiam – nada tinha a ver com o meu sentimento, o qual se parecia mais com o respeito e a vibração que experimentava antigamente quando frequentava a igreja assistindo a certos actos religiosos. O dinheiro que ganhava desta maneira não era tanto como poderia imaginar se. Primeiro, nunca chegava a ser tão ávida e venal como Gisela. Decerto que esperava que me pagassem porque se eu "ia" com os homens não era para me divertir; mas a minha natureza levava me a entregar me mais por uma espécie de exuberância física do que por espírito de lucro, e não pensava no dinheiro senão no momento em que me pagavam, o que era tarde. Sempre tive a convicção de que a mercadoria que eu fornecia aos homens nada me custava e não se pagava; recebia esse dinheiro mais como um presente do que como um salário: parecia me que o amor não devia pagar se e nunca estava bem pago; presa a esta modéstia e a esta presunção, sentia me incapaz de fixar um preço que não me parecesse arbitrário; também quando me davam muito, agradecia com uma excessiva gratidão, e quando me davam pouco nunca me sentia roubada nem protestava. Só mais tarde, levada por algumas decepções amargas, é que me decidi a imitar Gisela, que discutia as suas condições antes de chegar a acordo. Mas ao princípio corava, murmurava os preços entre dentes; muitos não me percebiam; tinha sempre que repetir. Havia ainda outro motivo que tornava insuficiente o dinheiro que ganhava. Olhando às despesas muito menos que dantes, permitindo me a compra de muitos mais vestidos, perfumes, artigos de toilette e outros objectos semelhantes necessários à minha profissão, o dinheiro que recebia dos meus amantes não era mais do que aquele que outrora ganhava sendo modelo e ajudando minha mãe a trabalhar.
23 Parecia ter grande empenho em considerar se culpado: mas julguei compreender que, longe de sentir remorsos, tinha prazer em pensar que me tinha corrompido e desnudado. Sentia prazer... é dizer muito! Excitava o. Talvez fosse esse o motivo principal da sua paixão por mim. Compreendi isso logo que me apercebi de que muitas vezes, durante os nossos encontros, insistia para que lhe contasse com pormenores o que se passava entre os meus amantes ocasionais e eu. No decorrer destas descrições ficava com uma cara alterada, tensa, atenta, que me desagradava e me fazia corar. Logo a seguir atirava se para cima de mim, e enquanto me possuía repetia me com uma intensa paixão palavras injuriosas, brutais, obscenas, que eu não posso repetir e que me pareciam ofensivas até para a mulher mais depravada. Como esta estranha atitude podia estar ligada à sua adoração por mim nunca o compreendi; do meu ponto de vista, é impossível amar uma mulher sem a respeitar; mas no seu caso, o amor e a crueldade pareciam misturar se, emprestando um ao outro a sua cor e a sua força. Algumas vezes pensava que esta singular volúpia que sentia em me julgar degradada por sua culpa era lhe sugerida pelo seu trabalho de polícia, o qual consistia precisamente, como o percebi, em procurar o ponto fraco dos acusados, corrompê los e aviltá los de maneira que se tornassem inofensivos. Chegou mesmo a dizer me, já não sei a que propósito, que todas as vezes que conseguia fazer confessar ou domar um acusado, de uma maneira ou de outra, sentia uma satisfação particular, quase física, parecida com a da posse amorosa. "O acusado é como uma mulher – explicava me. Enquanto resiste tem a cabeça alta. Mas quando cedeu, uma vez só que seja, não é mais que um farrapo que se pode retalhar como e onde se quiser". Portanto, parecia me mais provável que o seu carácter cruel e voluptuoso fosse nele uma coisa inata, e se escolhera esta profissão era porque tinha feitio para ela e não o caso contrário. Astárito não era feliz; ainda mais: a sua infelicidade sempre me pareceu a mais completa e a mais irremediável que vi, porque não provinha de qualquer motivo exterior, mas de uma incapacidade, de uma insegurança que nunca consegui apreender. Quando me fazia contar as minhas experiências profissionais tinha o costume de se ajoelhar na minha frente, de pousar a cabeça nos meus joelhos e ficar imóvel nesta posição às vezes durante uma hora. Não tinha mais que passar lhe a mão de vez em quando sobre a cabeça, levemente, como as mães fazem aos filhos. De vez em quando gemia, talvez mesmo chorasse. Nunca amei Astárito, mas nesses momentos inspirava me uma grande compaixão, porque compreendia que sofria e que não havia qualquer meio de lhe aliviar o sofrimento. Era com a maior amargura que falava da família; da mulher, que odiava, dos filhos, que não amava, dos parentes, que lhe tinham dado uma infância difícil, e depois, quando ele era ainda inexperiente, o tinham obrigado a fazer um casamento desastroso. Ao seu trabalho nem aludia.
24 Então compreendi que a minha angústia não era devida às coisas que eu fazia, mas, profundamente, ao único facto de viver; não era nem bom, nem mau, mas simplesmente doloroso e sem razão de ser. Durante aqueles instantes este estado de alucinação provocou me um arrepio que me percorreu o corpo todo e me pôs os cabelos em pé, com formigueiro na raiz. Tive de repente a impressão de que as paredes da casa, a cidade, e até o mundo, se desvaneciam, que me encontrava suspensa num espaço vazio, negro e sem limites, e, para cúmulo, suspensa com os meus trapos, os meus sonhos, o meu nome, a minha profissão. Uma rapariga chamada Adriana suspensa no nada. Parecia me que esse nada era uma coisa solene, terrível e incompreensível e que o aspecto mais triste de toda a questão era apresentar me precisamente nesse nada com os modos e a aparência que tinha à noite para me apresentar na pastelaria onde Gisela me esperava. Não me consolava a ideia de que os outros se moviam e agitavam de uma maneira também frívola e inadequada dentro deste vazio. Admirava me só de que não tivessem disso a consciência, e, como acontece quando muita gente descobre ao mesmo tempo o mesmo facto, não comunicassem as suas observações e não falassem nelas mais frequentemente. Acontecia me nesses momentos ajoelhar me e rezar, mais talvez por hábito de infância do que por vontade clara e consciente. Mas não rezava empregando as expressões habituais das orações; pareciam me muito longas para o meu súbito estado de alma. Ajoelhava me com tal violência que às vezes as pernas me doíam durante muitos dias, e rezava assim, com força, com uma voz desesperada: "Cristo, tem piedade de mim"! Não era uma verdadeira oração, mas uma espécie de fórmula mágica, pela qual esperava dissipar os meus terrores e reencontrar a realidade habitual. Depois de gritar desta maneira, impetuosamente, com todas as forças do meu corpo, ficava muito tempo absorta, com a cara entre as mãos. Por fim, já em nada pensava, aborrecia me e ficava a Adriana de sempre que se encontrava no meu quarto. Apalpava o corpo, admirando me de o encontrar intacto e presente, levantava me e ia deitar me. Sentia me cansada, dolorida, como se tivesse rolado muito tempo por um talude pedregoso. Adormecia logo em seguida. Estes estados de alma, todavia, não exerciam qualquer influência na minha vida habitual. Continuava a ser a Adriana habitual, com o seu carácter de sempre, que encontrava os homens na rua e os trazia para casa por dinheiro, que se dava com a Gisela, que falava de coisas sem importância com sua mãe e com os outros. Por vezes parecia me estranho ser assim tão diferente, na solidão e em sociedade, nas minhas relações comigo própria e nas que tinha com os outros. Mas não imaginava que era só eu a experimentar sentimentos tão violentos, tão desesperados. Pensava que isso aconteceria a todas as pessoas. pelo menos uma vez por dia; sentir a vida reduzir se a um único estado de angústia inefável e absurdo. E com os outros também, esta consciência não produzia efeitos visíveis.
25 O carro pôs se de novo em movimento. Durante o resto do trajecto ele não cessou de falar e de rir animadamente; por vezes mesmo chegou a tirar as duas mãos do volante para gesticular. O meu companheiro, pelo contrário, depois da sua breve intervenção, tinha voltado à sombra e ao silêncio. Eu começava a simpatizar fortemente com ele, sentindo me, ao mesmo tempo, curiosa e atraída; agora, que volto a pensar nisso, passado tanto tempo, compreendo ter sido nesse momento que me apaixonei por ele, ou, pelo menos, que comecei a consubstanciar na sua pessoa todas as coisas que amava e de que até então estivera privada. Afinal de contas, o amor tem de ser um sentimento completo e não apenas uma pura satisfação dos sentidos; e eu continuava, teimosamente, em busca dessa perfeição que pensara existir em Gino. Talvez esta fosse a primeira vez em toda a minha vida, e não apenas desde que exercia este ofício, que se me deparava uma pessoa como este homem, com tais maneiras e uma tal voz. O primeiro pintor de quem eu tinha sido modelo assemelhava se a ele até certo ponto, mas era mais frio e mais seguro de si; aliás, mesmo que ele o não tivesse querido, eu ter me ia apaixonado por ele do mesmo modo, se bem que, por motivos diferentes, a voz e as atitudes deste rapaz suscitassem na minha alma os sentimentos que se tinham apossado de mim a primeira vez que tinha estado na casa dos patrões de Gino. Assim como, ao ver a ordem, o luxo e a limpeza dessa casa, eu tinha pensado que, sem um ambiente como esse, a vida não valia a pena ser vivida, assim agora a voz e os gestos deste rapaz, tão gentis e tão calmos, inspiravam me não sei que atracção profunda e comovida. Ao mesmo tempo ele acordou em mim um violento desejo físico; sentia me ansiosa por ser acariciada pelas suas mãos, beijada pela sua boca; compreendi que acabava de se produzir em mim essa mistura imponderável, mas veemente das aspirações antigas e do prazer actual que é a própria essência do amor e marca infalivelmente o seu nascimento. Ao mesmo tempo temia que ele se apercebesse dos meus sentimentos e me desprezasse. Dominada por este medo, estendi a mão e apertei a dele. Mas ele não teve qualquer reacção. Então uma grande perplexidade tomou conta de mim; sentia que a sua imobilidade me impunha uma atitude de desinteresse, mas essa atitude era superior às minhas forças. O carro, dobrando bruscamente uma esquina, atirou nos um contra o outro; fingi ter perdido o equilíbrio e deixei cair a cabeça nos seus joelhos. Ele estremeceu, mas não disse uma palavra nem fez um gesto. Sentindo com alegria que o carro corria velozmente, fiz como fazem os cães: meti a minha cara no meio das suas mãos, beijei as e passei as no meu rosto numa carícia que eu quisera ardentemente fosse afectuosa e espontânea. Compreendendo que estava de cabeça perdida, admirei me de como meia dúzia de palavras amáveis haviam bastado para isso. Mas ele não me concedeu a carícia desejada e tão humildemente pedida, e retirou as mãos da minha cara. Precisamente neste momento o carro parou.
26 Quando recordava isto, o que mais me afligia era o ter pronunciado esta frase com uma ingênua satisfação. Deveria ter pensado que a uma pessoa como ele, tão fina, tão sensível, o meu quarto devia parecer lhe um antro sórdido, duplamente feio, pelos seus móveis tão modestos e pelo uso que eu lhe dava. Bem desejei nunca ter pronunciado esta frase infeliz, mas agora era tarde. Nada havia a fazer! Dava me a sensação de uma prisão da qual eu não podia fugir de maneira alguma. Esta frase era eu própria, inalterável, de futuro, como no que eu me tornara por vontade. Esquecê la ou ter a ilusão de não a ter dito era o mesmo que esquecer me de mim própria ou querer ter a ilusão de que não existia. Estas reflexões intoxicavam me como um veneno lento que lentamente seguira o seu caminho nefasto por entre o sangue das minhas veias. Habitualmente, de manhã, costumava saltar da cama, obedecendo a uma espécie de vontade independente. Mas nesse dia foi exactamente o contrário que aconteceu: a manhã passou, chegou a hora do almoço e eu nem sequer ainda me tinha mexido. Sentia me inerte, impotente, entorpecida e ao mesmo tempo dorida como se esta imobilidade me causasse uma fadiga desesperada. Tinha a impressão de ser um desses barcos apodrecidos que ficam amarrados em qualquer baía pantanosa, com o ventre cheio de água fétida e negra: se alguém sobe para eles, as pranchas apodrecidas cedem logo e a barca, que talvez ali estivesse há anos, afunda se num instante. Não sei quanto tempo fiquei neste estado enrolada na roupa da cama, os olhos dilatados, o lençol puxado até ao nariz. Ouvi tocar o meio dia nos sinos, depois a uma, as duas, as três, as quatro horas. Tinha fechado a porta à chave e de vez em quando minha mãe, inquieta, vinha bater me à porta. Respondia lhe que já me levantava e que me deixasse em paz. Quando começou a anoitecer, procurei ser corajosa, fiz um esforço, que me pareceu sobre humano, atirei com a roupa e levantei me da cama. Sentia os membros inchados de inércia. Lavei me, vesti me, arrastando me de um lado para o outro no quarto. Em nada pensava; sabia somente, não no meu espírito, mas em todo o meu corpo, que pelo menos nesse dia não desejava ir à caça dos meus amantes costumados. Depois de vestida, fui ter com minha mãe e disse lhe que passaríamos a noite juntas. Passearíamos pelo centro da cidade e à noite iríamos tomar um aperitivo a um café. A alegria de minha mãe, que não estava habituada a este género de convites, irritou me não sei porquê: mais uma vez tive ocasião de observar como as suas faces estavam flácidas e gordas e como os olhos empapuçados tinham um luzir equívoco e falso. Mas refreei a tentação de lhe dizer alguma indelicadeza que teria destruído a sua alegria e fui sentar me à mesa da sala grande, à espera que ela se vestisse. A luz branca dos anúncios entrava pela janela sem cortinas, iluminava a máquina de costura e estendia se pela parede. Baixei os olhos sobre a mesa e vi as figuras coloridas do jogo de paciência com que minha mãe enganava o aborrecimento das suas longas noites.
27 Sabia que ela gostava de passear à hora de maior movimento pelas ruas principais, que tinham as lojas mais bonitas da cidade. Assim, tomamos um eléctrico e descemos a Rua Nacional. Minha mãe costumava levar me a passear nessas ruas quando eu era garota. Começava na Praça do Hexaedro pelo passeio da direita. Lentamente, examinando as montras uma por uma com atenção, chegava à Praça de Veneza. Ali, sempre observando tudo com minúcia e puxando me pela mão, passava para o outro passeio e voltava para a Praça do Hexaedro. Então, sem ter comprado um alfinete nem se ter atrevido a pôr pé num dos numerosos cafés da rua, trazia me para casa, sonolenta e cansada. Lembrava me de que esses passeios não me agradavam, porque, ao contrário de minha mãe, eu teria desejado entrar, comprar e trazer para casa todas as belas coisas expostas atrás dos vidros brilhantemente iluminados. Mas depressa aprendera que éramos pobres e não manifestava de forma alguma os meus sentimentos. Uma vez só, não me lembro porquê, tive, como costuma dizer se, uma birra. E percorremos a rua do princípio ao fim, minha mãe puxando me por um braço e eu resistindo com todas as forças, chorando e gritando... Por fim, em vez do objecto desejado, minha mãe deu me um par de tabefes e a dor da bofetada fez esquecer a da renúncia. Encontrei me de novo pelo braço da minha mãe, no mesmo passeio da mesma Praça do Hexaedro, como se os anos não tivessem passado. Via as pedras dos passeios, onde formigavam pés calçados com botas, grossos sapatos, sandálias, saltos altos, saltos baixos; via os transeuntes que subiam e desciam a rua, a dois e dois, em grupos de homens, de mulheres e de crianças ou ainda pessoas sós, umas lentas outras apressadas, todas iguais, justamente porque queriam parecer diferentes, com os mesmos fatos, os mesmos chapéus, as mesmas caras, os mesmos olhos, as mesmas bocas. Via as sapatarias, as joalharias, as relojoarias, as livrarias, as floristas, as lojas de fazendas, os luveiros, os cafés e os cinemas, os bancos. Revia as janelas iluminadas das belas casas, com pessoas lá dentro a andar de um lado para o outro ou sentadas à mesa a trabalhar, os anúncios luminosos, sempre os mesmos. Num canto da rua, o vendedor de jornais, os vendedores de castanhas, os mendigos: o cego com a cabeça encostada à parede, a bengala branca estendida e os óculos pretos; mais abaixo a mulher quase velha com uma chaga no seio, ainda mais abaixo o idiota com aquele coto amarelo luzidio como um joelho e que estendia à caridade. Ao encontrar me nesta rua, no meio de todas as coisas que me eram familiares, experimentava uma fúnebre impressão de imobilidade, que me arrepiou da cabeça aos pés, e durante um momento tive a sensação de estar nua, como se um sopro de terror se tivesse infiltrado por entre a minha roupa e a minha pele. O aparelho de T. S. F. de um café transmitia a voz ruidosa e apaixonada de uma mulher que cantava. Era no ano da guerra da Etiópia e ela cantava Linda Caránha Preta. Como era natural, minha mãe não se apercebia dos meus sentimentos; de resto eu não os deixava transparecer.
28 Nenhum horror entrava nesta representação, o menor, como já disse, mas também qualquer aprovação. Experimentava o mesmo deleite singular que me provocavam, quando era pequena, os contos de minha mãe: está se no quente, encolhida contra sua mãe e a imaginação segue com embriaguez maravilhada as aventuras das personagens do conto. Somente, o meu conto era sombrio e sangrento, o herói era Sonzogne e o meu encantamento misturava se a uma impotente e melancólica tristeza. Como se quisesse tirar o sentido do conto, recomeçava, revia ainda as fases do crime, sentindo de novo um obscuro prazer e encontrava me de novo em face do mistério. Como um homem que salta de um lado para o outro de um precipício mede mal o salto e cai no vácuo, no decurso de uma destas lucubrações adormeci. Dormi talvez duas horas e acordei; ou, melhor, o meu corpo começou a acordar enquanto o meu espírito, mergulhado numa espécie de torpor, continuava adormecido. Foi com as mãos que comecei a acordar; estendia as nas trevas como as de um cego, sem conseguir reconhecer o sítio onde estava. Adormecera estendida sobre a cama e agora estava de pé, num lugar estreito, entre muralhas verticais, herméticas e lisas. Veio me imediatamente à ideia uma cela de prisão; e ao mesmo tempo a recordação da criada de quarto que Gino havia feito prender injustamente. Eu era a criada de quarto e a minha alma padecia toda a dor física da injustiça sofrida. Esta dor dava me a sensação física de não ser já eu, mas a criada de quarto; sentia que esta dor me transformava, me fechava no corpo desta mulher, me impunha a sua cara, me obrigava aos seus gestos. Levei as mãos à cara, chorava, pensava que me tinham fechado injustamente numa cela e que me era impossível sair de lá. Mas ao mesmo tempo sentia que era ainda a Adriana a quem não tinham feito qualquer injustiça e que não tinha sido aprisionada. E compreendi que me bastaria um gesto para me libertar e deixar de ser a criada de quarto. No entanto, não conseguia adivinhar qual seria esse gesto, sofrendo e desejando desesperadamente sair da minha prisão de angústia e de piedade. Depois, de repente, rodeada desta mesma luz, feita de espasmos e de trevas, que nos deslumbra quando recebemos uma pancada violenta, o nome de Astárito resplandeceu no meu espírito. "Irei ter com Astárito e pedirei que a liberte!", pensava eu. Estendi de novo as mãos e descobri ao mesmo tempo que as paredes da minha cela se tinham separado, deixando uma estreita abertura vertical por onde eu podia escapar me. Dei alguns passos às escuras, os meus dedos encontraram o interruptor. Acendi a luz com uma febre histérica. O quarto iluminou se. Estava ao pé da porta, nua, anelante, o corpo e a cara molhados de suor frio e abundante. A cela na qual me parecera estar encerrada não era senão o espaço compreendido entre o armário, o canto do quarto e a cómoda: espaço restrito que efectivamente as paredes e os dois móveis quase fechavam. Durante o sono levantara me, e tinha me encurralado ali.
29 Assustada, disse o meu nome a Astárito e ouvi com alívio a sua voz mudar imediatamente de tom e tartamudear enquanto o ritmo das suas palavras se acelerava. Devo confessar que me senti invadir por uma onda de afeição por ele, porque um amor assim (aliás sempre lisonjeiro para uma mulher) dava me segurança e enchia me de gratidão. Marquei lhe encontro com uma voz acariciadora; prometeu vir sem falta e saí do restaurante. Durante toda aquela noite que passara com pesadelos tinha chovido muito; várias vezes ouvira durante o sono o ruído da chuva misturado com os assobios do vento, formando como uma parede de mau tempo à roda da casa, aumentando a solidão e as trevas nas quais eu me debatia. Mas de madrugada a chuva cessara e os últimos sopros de vento tinham varrido as nuvens, deixando o céu límpido e o ar imóvel e lavado. Depois de ter telefonado a Astárito, comecei a andar ao longo de uma avenida de plátanos, sob os primeiros raios de sol dessa manhã. Do meu penoso e frequentemente interrompido sono não ficara mais que um leve atordoamento que o ar frio me fez em breve passar. A beleza do dia dava me uma grande alegria, e todos os objectos sobre os quais os meus olhos pousavam pareciam me dotados de uma sedução que encantava os meus olhos e me alegrava. Gostava das gotas de orvalho em torno das pedras, agora secas. Gostava dos troncos dos plátanos com as escamas sobrepostas da sua casca; brancas, verdes, amarelas, castanhas, e aqui e ali douradas; gostava das fachadas das casas onde as grandes manchas molhadas conservavam ainda o traço da lavagem nocturna; gostava dos transeuntes da manhã; homens que vão apressados para o trabalho, criadas com o cesto no braço, raparigas e rapazes acompanhados dos pais ou dos irmãos, levando pastas e livros. Parei para dar esmola a um velho mendigo, e quando procurava o dinheiro no meu porta moedas, os meus olhos pousaram ternamente sobre o seu velho capote militar e começaram a sentir simpatia pelos bocados com que ele estava remendado nos cotovelos e junto da gola. Eram bocados cinzentos, castanhos, amarelos ou de um verde menos destacado do conjunto; reparei no prazer que sentia ao observar a sua cor e a maneira como eles estavam solidamente cosidos com linha preta, com grandes pontos visíveis, e surpreendi me a pensar no trabalho que ele teria tido uma manhã para cortar com a tesoura a parte usada, procurar um bocado em qualquer velho farrapo, ajustá lo sobre o buraco e cosê lo com amor. Gostava desses remeados como o esfomeado gosta de ver o pão saindo do forno; afastando me, não pude impedir me de olhar para trás várias vezes para os olhar. Então, de repente, pensei que devia ser bom ter uma vida semelhante àquela tão límpida, tão agradável, tão limpa. Uma vida que tivesse sido lavada de todos os seus aspectos embaciados e permitir olhar tudo com amor, mesmo as coisas mais humildes. Nesse momento senti de novo o desejo, há muito adormecido e mudo, de uma vida normal, com um homem só, numa casa nova, arrumada, clara e limpa.
30 Parecia me que qualquer coisa mudara, mesmo na minha fisionomia, e receava quase que se decifrasse claramente o segredo de Sonzogne na expressão da minha cara. Ao mesmo tempo experimentava um desejo doce, agradável, irresistível, de contar a alguém o que sabia. Como se fosse demasiada a água num vaso muito pequeno para a conter, o segredo transbordava da minha alma e eu sentia a tentação de o lançar para outra. Suponho que é o principal motivo pelo qual tantos criminosos confiam às suas amantes ou às suas mulheres os crimes que cometeram e estas os contam a algum amigo mais íntimo e aquele a outro, até que a informação chega aos ouvidos da polícia, provocando assim a perdição de todos. Mas penso também que, quando confiam os seus actos infames, os criminosos procuram descarregar uma parte de um peso que lhes pareceu intolerável e fazem com que os outros também o carreguem. Como se o crime fosse um fardo que eles pudessem partilhar e repartir por vários ombros até o tornar sem importância. Como se, pelo contrário, ele não fosse uma carga inalienável, cujo peso não diminuiu por estar distribuído por outras pessoas, mas que se multiplica por todos aqueles que aceitam a sua carga! Percorrendo as ruas para encontrar um telefone público, comprei dois jornais e procurei, nas notícias da cidade. informações sobre o crime da Rua Palestro. Mas muitos dias se tinham passado: não vi senão algumas linhas que exprimiam a decepção no seguinte título: "Nenhuma luz sobre o assassínio do ourives". Compreendi que, a menos que praticasse qualquer erro grosseiro, Sonzogne podia estar certo de que nunca mais o descobririam. O carácter ilícito das actividades da vítima tornava, por si mesmo, muito difíceis as investigações policiais. O ourives, como diziam os jornais, estava com frequência em contacto, secretamente e por motivos inconfessáveis, com pessoas de todas as classes sociais e de todas as condições; o assassino podia muito bem ser alguém que nunca o tivesse visto antes e que o matasse sem premeditação. Esta hipótese estava muito próxima da verdade. Mas, precisamente porque era justa, deixava ver que a polícia renunciara a descobrir o culpado. Encontrei um telefone público num restaurante e marquei o número de Astárito. Havia bem umas seis semanas que não lhe telefonava; devo tê lo apanhado desprevenido, porque não reconheceu logo a minha voz e respondeu me primeiro com o tom expedito que empregava quando estava no seu gabinete. Durante um instante tive a nítida impressão de que ele não queria mais ouvir falar de mim e senti um baque no coração ao pensar na criada de quarto na sua prisão, e na fatalidade que fizera com que Astárito deixasse de amar me no próprio momento em que a sua intervenção era necessária para salvar esta desgraçada. No entanto, o meu próprio susto agradou me porque me deu de novo o sentimento perdido da minha bondade e me fez compreender que a libertação desta mulher era verdadeiramente importante para mim, e que, não obstante as minhas relações com Sonzogne, o assassino, continuava a doce e compassiva Adriana que sempre fora.
31 Eu ria, defendia me, debatia me, estava demasiadamente feliz por ver acordar o seu desejo para notar o que havia de forçado e de insincero na sua atitude. Magoava me como se o meu corpo fosse para ele um objecto de ódio e não de amor. Julguei ver brilhar nos seus olhos, em vez de desejo, uma espécie de cólera. Depois o seu frenesi terminou de repente, como tinha começado. De uma maneira curiosa, inexplicável, talvez por estar dominado pela embriaguez, deixou se cair de costas na cama a todo o comprimento e encontrei o ao meu lado com a bizarra impressão de que ele não se mexera, nem me falara, que nunca me tinha tocado, nem beijado, como se tudo estivesse ainda por começar. Fiquei muito tempo imóvel, ajoelhada na sua frente sobre a cama, os cabelos nos olhos, olhando o e aflorando de vez em quando timidamente com a ponta dos dedos o seu belo corpo alongado, magro e puro. Tinha a pele branca debaixo da qual sobressaíam os ossos, os ombros largos e magros, as ancas estreitas e as pernas longas; não tinha pêlos, salvo alguns no peito; a posição em que estava, deitado de costas, esticava lhe o ventre de maneira que o púbis parecia estendido como uma oferta. Em amor eu não gosto de violência; por isso me parecia que nada se tinha passado entre nós, que tudo estava ainda no princípio. Deixei, pois restabelecer se a calma e o silêncio depois deste tumulto irônico e fictício, e quando me senti de novo no estado de alma apaixonado e sereno que me é habitual, lentamente, do mesmo modo que durante o tempo quente se entra lentamente na água deliciosa de um mar calmo, estendi me ao seu lado, entrelacei as minhas pernas nas suas, rodeei lhe o pescoço com os braços e apertei me contra ele. Desta vez não se mexeu nem falou até ao fim. Eu chamava lhe os nomes mais doces, respirava sobre o rosto, envolvia o na rede apertada e quente das minhas carícias, e ele, como se estivesse morto, jazia deitado de costas, imóvel. Mais tarde soube que esta passividade sem participação era a maior prova de amor que ele podia dar. Muito mais tarde, durante a noite, levantava me apoiada no cotovelo e contemplava o com uma intensidade da qual guardo, passado tanto tempo, uma recordação extraordinariamente precisa e dolorosa. Dormia de perfil, com a cara enterrada na almofada. O ar de dignidade vacilante que parecia querer conservar a todo o custo abandonara o. Nos seus traços, que o sono tornava sinceros, nada mais restava do que a sua pouca idade, antes com uma ingenuidade e uma frescura impossíveis de definir do que com uma expressão que reflectisse qualquer qualidade ou inclinação particulares de alma. Mas lembrava me de que o tinha visto ora malicioso, ora hostil e indiferente. ora cruel, ora cheio de desejo, e experimentava uma insatisfação triste e ansiosa, porque pensava que esta malícia, esta hostilidade, esta indiferença, este desejo, todas estas coisas que o personalizavam e que o distinguiam de mim e dos outros, partiam de um centro profundo que para mim ficava longínquo e secreto.
32 Muitas vezes, daí em diante, pensando neste primeiro encontro de amor, repreendi me cruelmente por não ter sabido prever os perigos aos quais o expunha a sua paixão política. A verdade é que não tinha, nem nunca vim a ter, qualquer influência sobre ele. Mas, pelo menos, se eu soubesse então o que soube depois, teria podido aconselhá lo: e mesmo que os conselhos para nada servissem, estaria ao seu lado em plena consciência da causa e firmemente decidida. Esta foi certamente a minha culpa, ou, melhor, a culpa da minha ignorância, da qual não era culpada, mas sim a minha condição. Como já disse, nunca me ocupei de assuntos de política, nada deles percebia, e sentia os estranhos ao meu destino; era como se eles se desenrolassem não à minha volta, mas num outro planeta. Quando lia o jornal, saltava a primeira página porque as notícias sobre política não me interessavam e tomava conhecimento dos assuntos comezinhos, em que certos acontecimentos ou alguns crimes forneciam ao meu espírito matéria de reflexão. Na realidade a minha condição era muito parecida com a de certos animaizinhos transparentes que vivem, segundo dizem, no fundo do mar, quase às escuras, e nada sabem do que se passa à superfície, à luz do sol. A política, como de resto numerosas coisas às quais os homens pareciam ligar tanta importância, chegava até mim como de um mundo desconhecido, superior – mais obscuras, mais incompreensíveis que a luz do dia é para esses simples animálculos no fundo dos seus esconderijos submarinos. Mas não foi só culpa minha e da minha ignorância; foi também culpa dele, da sua imprudência e da sua vaidade. Se eu me tivesse apercebido dos perigos que a sua vaidade poderia fazer surgir – e esses perigos existiam –, eu poderia talvez ter agido de maneira diferente; não sei qual seria o resultado, mas ter me ia esforçado por compreender e conhecer tudo o que ignorava. Aqui quero notar outro elemento que de certo modo contribuiu para o meu procedimento despreocupado: o facto de Jaime dar a impressão de, em vez de agir com seriedade, representar um papel e de uma maneira quase cômica. Dir se ia que ele compunha peça por peça uma personagem ideal na qual não acreditava senão até certo ponto, e que se esforçava sempre, quase maquinalmente, por harmonizar os seus actos com os desta personagem. Essa contínua comédia dava a impressão de um jogo no qual ele era, num certo sentido, um perfeito mestre; mas, como acontece aos jogadores, uma impressão semelhante roubava uma grande parte da seriedade a tudo o que ele fazia e sugeria também a falsa certeza de que para ele nada era irreparável e que no último momento o seu adversário lhe devolveria o dinheiro perdido e lhe estenderia a mão. Talvez até, como acontece com as crianças, para quem tudo é jogo, se divertisse realmente; mas o seu adversário era de respeito, isso viu se pela continuação. Foi assim que, acabada a partida, se encontrou desprevenido e desarmado, excluída toda a possibilidade de continuar o jogo e preso numa armadilha mortal.
33 Se os que me conheciam me tivessem visto, teriam com certeza pensado que eu procurava interessar os passeantes. Mas na verdade nada estava mais longe do meu espírito. Poderia talvez ter me deixado deter por algum homem que me tivesse agradado, mas não por dinheiro, mas por simples transporte de alegria, por exuberância de vida. Os poucos homens que me viram parada em frente das montras e me abordaram com as suas frases habituais e as suas propostas para me acompanharem não me agradavam. Nem lhes respondi, nem sequer os olhei e continuei a passear como se eles não existissem, com o meu passo habitual, indolente e majestoso. A vista da igreja na qual me confessara a última vez, depois do passeio a Viterbo, apanhou me desprevenida, neste estado de alma feliz e distraído. Entre os cartazes do cinema e a montra da loja das meias, rutilante de luz, a sua fachada barroca mergulhava no escuro, disposta à maneira de guarda vento num recanto da rua, com a sua alta frontaria encimada por dois anjos tocando trombetas, e as manchas violetas que projectava sobre elas o anúncio luminoso de uma casa contígua dava me a impressão da cara escura e enrugada de uma velha, abrigada com um xaile fora de moda, que me tivesse feito um sinal de chamada familiar no meio das caras iluminadas das pessoas. Lembrei me do belo confessor francês, o padre Élie, e tive a impressão de que ninguém se sairia melhor do que ele, homem do mundo e homem novo, desta maçada de restituir a caixa. Além disso, ao padre Élie, conhecendo me num certo sentido, eu teria menos dificuldade em confessar lhe as coisas terríveis e vergonhosas que pesavam sobre a minha alma. Galguei os degraus, afastei a cortina que obstruía a porta e entrei depois de ter colocado na cabeça um lenço de bolso. Enquanto molhava os dedos na água benta, reparei numa figura esculpida em volta da pia: uma mulher nua, com os cabelos ao vento, os braços levantados, que fugia perseguida por um repugnante dragão, com bico de papagaio, levantado sobre as patas de trás, como um homem. Julguei reconhecer esta mulher; pensava que fugia também de um dragão parecido, mas a minha fuga, como a desta mulher, era uma fuga circular. Acontecia me por vezes andar à roda, não para fugir, mas para seguir com ardor e alegremente este vil dragão. Afastei me da pia de água benta e, persignando me, voltei me para o interior da igreja. Pareceu me que conservava a mesma desordem, a mesma obscuridade, a mesma desolação que da última vez que a tinha visto. Como então, estava mergulhada na escuridão, salvo o altar mor, onde os círios iluminavam o crucifixo, fazendo brilhar confusamente os candelabros de cobre e as alfaias de prata. A capela dedicada à Virgem, na qual eu rezara com uma tão profunda e vã convicção, estava também iluminada; empoleirados em escadotes, dois sacristães pregavam à arquitrave cortinados vermelhos franjados de ouro. Vi que o confessionário do padre Élie estava ocupado e fui ajoelhar me, em frente do altar mor, sobre uma das cadeiras de palha em desordem.
34 Uma vez passado o primeiro pavor, devido a uma fraqueza nervosa comum a quase todas as mulheres, foi substituído na minha alma, não propriamente por um sentimento de resignação, mas por uma verdadeira vontade de aceitar a sorte que me ameaçava. Experimentava mesmo uma espécie de volúpia em deixar me arrastar até bem ao fundo do que eu imaginava ser o último desespero. Tinha a impressão de me sentir de qualquer maneira protegida pelo excesso da desgraça e pensava com um certo prazer que, à parte a morte, que já não me assustava agora, coisa alguma me podia acontecer de pior. Mas no dia seguinte foi em vão que esperei a visita, que eu previra, da polícia. Todo esse dia e o dia seguinte decorreram sem que nada acontecesse que justificasse as minhas apreensões. Durante todo este tempo não saí de casa, nem mesmo do quarto, e depressa me cansei de pensar nas consequências da minha imprudência. Voltei a pensar em Jaime e desejei tornar a vê lo, nem que fosse só mais uma vez antes que a denúncia do padre – continuava a considerá la inevitável – fizesse o seu efeito. No terceiro dia, à tardinha, quase sem reflectir, saltei da cama, vesti me com cuidado e saí de casa. Sabia a morada de Jaime; em vinte minutos cheguei lá. Mas no momento de entrar pensei que não o tinha avisado e fui tomada de um acesso de timidez. Receava que me recebesse mal, que até mesmo me pusesse na rua! Atrasei o passo impaciente, e com a alma cheia de tristeza parei em frente de uma montra pensando se não seria melhor voltar pelo mesmo caminho e esperar que fosse ele a decidir se ver me. Compreendia que era preciso mostrar muita cautela e muita perspicácia, particularmente neste primeiro período das nossas relações, e nunca mostrar que estava presa a tal ponto que me era impossível viver sem ele. Por outro lado parecia me duro voltar para trás, agora que a minha confissão me deixara inquieta e que tinha necessidade de o ver, até mesmo só para me distrair das minhas preocupações. Os meus olhos caíram sobre a montra da loja em frente da qual parara; era uma casa de camisas e gravatas; lembrei me de repente de que lhe tinha prometido uma gravata nova para substituir a outra esfiada. Quando se está apaixonado não se raciocina; disse a mim mesma que a gravata podia servir de pretexto para o visitar, sem reparar que essa dádiva confirmava precisamente o carácter inferior e ansioso do meu sentimento por ele. Entrei na loja, e, depois de ter escolhido durante muito tempo, preferi uma gravata cinzenta com riscas vermelhas – a mais bonita e a mais cara. Com a cortesia um pouco indiscreta dos empregados que pretendem influenciar os clientes, o empregado perguntou me se a pessoa a quem se destinava a gravata era loura ou morena. "É moreno", respondi lentamente; reparei que disse a palavra "moreno" com um acento terno e senti me corar à ideia de que o caixeiro pudesse ter notado este acento. A viúva Medolaghi habitava o quarto andar de uma velha casa triste, com janelas que davam para o cais do Tibre.
35 Ficou onde o deixei, junto do confessionário, com as mãos no peito e abanando a cabeça. Quando cheguei à rua, procurei reflectir calmamente sobre o que me acabara de acontecer. Por agora, deixando de parte as minhas primeiras confusas apreensões, compreendi que do que tinha medo, em suma, era de que o padre não respeitasse o segredo da confissão; esforçava me por aclarar por mim própria os fundamentos do meu receio. Sabia, como toda a gente, que a confissão é um sacramento e como tal inviolável. Sabia também que era quase impossível que um padre, por mais corrupto que fosse, se não sentisse culpado de uma tal violação. Mas, por outro lado, o seu conselho para denunciar Sonzogne fazia me recear que ele tomasse a iniciativa, se eu não me adiantasse, de denunciar à polícia o autor do crime da Rua Palestro. Era sobretudo a sua voz que me fazia recear o pior. Sou mais emotiva do que reflectida e possuo, como certos animais, uma presciência instintiva do perigo. Todas as razões que me apresentava a minha inteligência para me dar segurança ficavam reduzidas a nada em presença deste pressentimento sem razão. "É bem verdade – pensava eu – que o segredo da confissão é inviolável". Mas só um milagre pode impedir este padre de denunciar Sonzogne e os outros! Um outro facto contribuiu para me dar a impressão de uma ameaça de desgraça iminente e misteriosa: a substituição do segundo confessor. Evidentemente que o monge francês não era o padre Élie, se bem que ele me tivesse ouvido no confessionário que tinha esse nome. Então quem era? Arrependi me de não ter pedido noticias ao verdadeiro padre Élie. Mas ao mesmo tempo dizia que este embirrante padre me teria dito que nada sabia, reforçando assim o carácter de aparição que a silhueta do jovem religioso deixara no meu espírito. Realmente ele tinha muito de fantasma, tanto pela sua figura, tão diferente da dos outros padres, como pela maneira como apareceu na minha vida e como desapareceu. Cheguei a duvidar de que o tivesse visto alguma vez, ou, melhor, de que o tivesse visto em carne e osso, e pensei por momentos numa alucinação, quanto mais não fosse porque eu começava a encontrar lhe uma indefinida semelhança com Cristo tal como o representam habitualmente nas imagens santas. Mas se assim era, se Cristo me tinha realmente aparecido num momento doloroso e tinha aceite a minha confissão, o facto de um padre repugnante e sórdido o ter substituído era claramente de mau agouro. Isso indicava pelo menos que num momento da maior angústia a religião me tinha abandonado. Era como se num momento de necessidade urgente eu tivesse aberto um cofre que supunha recheado de peças de ouro e aí encontrasse, em lugar delas, poeira, teias de aranha e cotão. Entrei em casa com o pressentimento de uma desgraça que a minha confissão iria provocar e fui logo deitar me sem jantar, convencida de que iria ser presa e esta seria a última noite que passaria em casa. Devo dizer, no entanto, que não experimentava o menor medo nem o menor desejo de fugir ao meu destino.
36 Ainda agora ignorava qual o seu fim, quais as suas ideias, a que partido pertencia. Esta ignorância tinha origem no segredo em que ele envolvia este aspecto da sua vida, no facto de eu nada perceber de política e de, quer por timidez quer por ignorância, não lhe pedir explicações que me poderiam esclarecer. Fazia mal; Deus sabe como me arrependi mais tarde! Mas parecia me naquela altura extremamente cômodo não me misturar em coisas que supunha não me dizerem respeito e não pensar senão no amor. Em suma, portava me como muitas outras mulheres, esposas ou amantes, que ignoram como o homem que lhes pertence arranja o dinheiro que lhes dá. Acontecia me muitas vezes encontrar os seus dois camaradas, que ele via quase todos os dias. Mas eles não falavam de política na minha presença; gracejavam ou conversavam sobre coisas sem importância. No entanto não conseguia banir da minha alma uma apreensão constante, porque compreendia que tramar conspirações contra o governo era perigoso. Receava, sobretudo, que Jaime se entregasse a qualquer acto de violência; na minha ignorância, não conseguia separar o tema da conspiração da ideia de armas e de sangue. A propósito disto, lembro me bem de um facto que demonstra que, mesmo obscuramente, eu sentia o dever de intervir para desviar os perigos que o ameaçavam. Sabia que é proibido usar armas e que a transgressão era o suficiente para o meter na cadeia. Por outro lado depressa se perde a cabeça em certos momentos; o emprego de armas tem muitas vezes comprometido pessoas que se teriam salvo sem elas. Por todos estes motivos pensava que o revólver de que Jaime se sentia tão orgulhoso, longe de lhe ser necessário, como ele pretendia, seria extremamente perigoso no caso de ele ser obrigado a fazer uso dele, ou até se, mais simplesmente, lho encontrassem. Mas não ousei falar lhe nisso; de resto sabia que seria inútil. Resolvi por isso agir às escondidas. Ele uma vez tinha me explicado como a arma funcionava. Um dia, enquanto dormia, tirei lhe o revólver do bolso das calças, abri o e tirei lhe as balas; depois tornei a pô lo no bolso. Escondi as balas numa gaveta, debaixo da roupa. Fiz tudo isto num abrir e fechar de olhos e voltei a deitar me a seu lado. Dois dias mais tarde meti as balas na mala e fui atirá las ao Tibre. No decurso de um destes dias Astárito procurou me. Quase o esquecera; quanto ao caso da criada de quarto achava que tinha cumprido o meu dever e não queria mais pensar nisso. Astárito informou me de que o padre tinha devolvido a caixa, que, a conselho do próprio comissário, a patroa de Gino tinha retirado a queixa e que a criada de quarto, reconhecida inocente, fora libertada. Devo reconhecer que esta boa noticia me agradou sobretudo porque me dissipou a impressão de mau agouro que me tinha deixado a minha última confissão. Agora já não pensava na criada, já em liberdade, mas em Jaime, e dizia a mim própria que, visto a denúncia que eu receava não ter sido feita, nada mais tinha a temer, nem por ele nem por mim. Na minha alegria não pude deixar de beijar Astárito.
37 Via Jaime quase todos os dias e, se bem que as nossas relações não tivessem mudado, contentava me com esta espécie de hábito, na qual parecia termos encontrado um ponto de acordo. Tacitamente estava bem claro entre nós que ele não me tinha amor, nunca me amaria e de qualquer maneira preferia sempre a castidade ao amor. Também estava tacitamente estabelecido que eu o amava, o amaria sempre a despeito da sua indiferença e que de qualquer maneira preferia um amor incompleto e vacilante como aquele que ausência de amor. Mas eu não era feita como Astárito; não me resignando a não ser amada, não encontrava menos prazer em amar; juraria que no fundo do meu coração não perdera a esperança de ser amada por Jaime à força de submissão, de paciência e de afeição. Mas não acalentava esta aspiração; ela era, bem mais que outra coisa, o tempero levemente amargo de deliciosas incertezas duramente ganhas. Entretanto, como quem não quer a coisa, procurei penetrar na sua vida. Já que não podia entrar pela porta principal procurei esgueirar me pela de serviço. A despeito deste ódio pelos homens que ele proclamava, e que creio que sentia, experimentava, por uma curiosa contradição, um impulso indomável para pregar e esforçar se por fazer o que ele considerava o bem do povo. Quase sempre intercalado por bruscos acessos de sarcasmo e de aborrecimento não era menos sincero quando o fazia. Foi nesta altura que ele pareceu apaixonar se pelo que ele chamava, não sem ironia, a minha educação. Como já disse, eu procurava prendê lo a mim; assim, favoreci o seu entusiasmo. Esta experiência, no entanto, acabou quase de repente de uma maneira que vale a pena relatar. Vinha ter comigo muitas noites a seguir, trazia me livros seus e depois de me explicar abreviadamente o assunto de que tratavam lia me um trecho ou outro. Lia bem, com grande variedade de inflexões, segundo o assunto, e com um fervor que o tornava corado e lhe dava uma grande vivacidade ao rosto. Mas o que ele mais lia eram coisas que, a despeito dos meus esforços, não chegava a compreender. Bem depressa deixei de o ouvir, contentando me em observar, com um entusiasmo que nunca fraquejava, as diversas expressões que a sua cara tomava. Na realidade, no decurso dessas leituras libertava se, sem ironia, nem receio, como alguém que está no seu elemento e já não teme mostrar se sincero. Aquilo magoava me porque até então julgava que era o amor, e não a leitura, a situação mais favorável à expansão da alma humana. Para Jaime, parecia bem ser o contrário. Nunca lhe vi no rosto uma expressão de tanto entusiasmo e ao mesmo tempo de candura, mesmo nos raros momentos de sincero afecto por mim, como logo que elevava a voz com curiosas entoações cavernosas ou a baixava num tom reflectido para me declamar os seus autores preferidos. Eu via então desaparecer por completo aquele ar afectado, teatral e cômico que nunca o abandonava até mesmo nos momentos mais sérios e que dava a impressão de que ele estava sempre a representar um papel.
38 O único traço a ligá los era o meu pavor. Discernia sobre o conjunto destes acontecimentos imprevistos e desgraçados as amplitudes de um destino que me cumulava de um só golpe de todos os dons funestos, como a Primavera faz amadurecer ao mesmo tempo os frutos mais diversos. É bem verdade que, segundo o provérbio, uma desgraça nunca vem só. Sentia o mais do que o pensava enquanto caminhava, de rua em rua, de cabeça baixa e curvando as costas sob um peso imaginário. Naturalmente a primeira pessoa à qual me lembrei de recorrer foi a Astárito. Sabia de cór o número do telefone da repartição; entrei no primeiro café. O telefone estava livre mas ninguém me respondeu. Liguei várias vezes e acabei por me convencer de que Astárito não estava lá. Devia ter ido jantar: voltaria mais tarde. Estas coisas são assim; mas, como acontece sempre, esperava que justamente desta vez, por excepção, o encontraria na repartição. Olhei para o relógio. Eram oito horas da noite; Astárito não voltaria antes das dez. Fiquei de pé, à um canto da rua; à minha frente estava uma ponte, percorrida por transeuntes que surgiam em silêncio, escuros e rápidos, como folhas mortas agitadas por uma incessante tempestade. Mas para lá da ponte as casas alinhadas davam uma impressão de tranqüilidade, com as janelas todas iluminadas e as pessoas que iam e vinham por entre as mesas e os outros móveis. Lembrei me de que não estava muito longe do Comissariado Central, para onde supunha terem levado Jaime. E, se bem que compreendesse ser essa uma tentativa desesperada, decidi ir lá directamente para pedir informações. Sabia de antemão que não mas dariam; mas pouco importava, queria sobretudo fazer alguma coisa por Jaime. Segui por uma rua transversal, caminhei rapidamente rente às paredes, cheguei ao Comissariado, subi alguns degraus e entrei. Diante da porta do porteiro, um polícia que lia o jornal, refastelado numa cadeira, com os pés noutra e o boné em cima da mesa, perguntou se aonde é que eu ia. "A Secção dos Estrangeiros", disse lhe. Era uma das numerosas secções do Comissariado; ouvira falar nela uma vez a Astárito, já não sei a que propósito. Não sabendo para que lado ir, subi ao acaso os degraus de uma escada suja e mal iluminada. Encontrava continuamente empregados e polícias com as mãos cheias de papéis e colava me à parede o mais possível, baixando a cabeça. Em todos os andares encontrava corredores sujos e escuros com gente que ia e vinha, depois portas abertas e salas e salas. O Comissariado parecia um enxame atarefado; mas as abelhas que o habitavam não pousavam decerto sobre flores; o seu mel, que eu saboreava pela primeira vez, era fétido, escuro e bem amargo. No terceiro andar, desesperada, enfiei ao acaso por um dos corredores. Ninguém olhava para mim, ninguém me ligava importância. A direita e à esquerda do corredor alinhavam se portas quase todas abertas; à entrada, agentes sentados em cadeiras de palha falavam e fumavam. No interior das salas vi quase sempre o mesmo espectáculo: rimas e rimas de papéis, um agente sentado a uma mesa, com a caneta na mão.
39 Mas seriam só as aparências? Lembrei me da sua frase: "Tenho a impressão de que me seguem" e perguntei a mim própria se no fim de contas o padre não teria falado. Não me parecia; mas até agora não podia provar o contrário. Continuando a pensar em Sonzogne pus me a imaginar o que se teria passado na minha casa depois da minha saída: Sonzogne, que esperava, impacientava se, vestia se aquando da entrada dos dois agentes. Da mesma maneira que com o crime de Sonzogne, esta reconstituição dava me um prazer insaciável e obscuro. A minha imaginação apresentou me os vários aspectos da cena de tiros, cujos pormenores me deliciavam. Sem dúvida, na luta tomava o partido de Sonzogne. Fremia de alegria vendo o polícia ferido cair, suspirei de alívio vendo Sonzogne fugir; seguia o com ansiedade ao descer as escadas e não me sentia tranquila enquanto o não via desaparecer na distância escura da avenida. Acabei por me cansar desta espécie de filme que imaginei e apaguei a luz. Já das outras vezes reparara que a cama estava encostada a uma porta de comunicação que dava para um quarto contíguo. Logo que apaguei a luz vi filtrar se um raio luminoso por entre os batentes mal fechados. Apoiei me nos cotovelos sobre a almofada, passei a cabeça por entre as grades de ferro da cama e espreitei pela fresta. Não o fazia por curiosidade, pois já sabia de antemão o que poderia ver ou ouvir do outro lado; era mais para fugir aos meus pensamentos e à solidão, que procurava, mesmo só espreitando, uma companhia no quarto vizinho. Mas durante um bom bocado ninguém vi, em frente da fresta da porta havia uma mesa redonda: a luz do lustre caía sobre esta mesa atrás da qual entrevi o reflexo de um espelho de guarda fato. No entanto ouvia falar; eram as palavras habituais que eu tão bem conhecia, as perguntas sobre a terra natal, a idade e o sobrenome. A voz da mulher era tranquila e reticente; a do homem rápida e trêmula. As vozes vinham de um canto do quarto: talvez estivessem já deitados. À força de olhar sem ver nada, pôs se me uma dor na nuca e estava a ponto de abandonar aquela posição quando a mulher apareceu e se foi pôr do outro lado da mesa em frente do espelho, que estava na sombra. Estava de pé, nua, de costas para mim, mas a mesa só me permitia vê la da cintura para cima. Devia ser muito nova: via umas costas magras, duras, sem graça, de uma brancura anêmica, encimadas por uma cabeleira crespa. Pensei que ela não devia ter ainda vinte anos, mas tinha o seio caído e talvez até já tivesse sido mãe. Devia ser urna das esfomeadas raparigas que rondavam os bosques das praças municipais, ao longo da estação, sem chapéu e frequentemente sem casaco, grosseiramente pintadas e esfarrapadas, com enormes sapatos de solas rotas. Pensava que, quando se ria, devia mostrar as gengivas. Vieram me estas ideias todas sem que eu reflectisse, porque ao ver estas pobres costas nuas me sentia reconfortada e tive a impressão de que gostava desta rapariga e compreendia bem de mais os sentimentos dela ao olhar se ao espelho do guarda fato.
40 Mas tinha quase a certeza de que nada disso acontecera. Não estava em casa e não voltou nem nessa noite nem no dia seguinte. Fiquei fechada no quarto, presa de um mal estar tão angustiante que não podia deixar de tremer da cabeça aos pés. Mas não tinha febre. Parecia me apenas que vivia fora de mim própria, num mundo anormal, excessivo, onde todo o espectáculo, todo o ruído, todo o contacto me feriam e me produziam desfalecimentos de coração. Nada me podia impedir de pensar em Jaime, nem mesmo a descrição em pormenor do novo crime de Sonzogne, que os jornais que minha mãe tinha comprado traziam em grandes letras. O crime tinha a assinatura de Sonzogne; parecia que os dois homens tinham lutado por momentos sobre o patamar em frente da porta de Astárito, depois Sonzogne tinha o empurrado contra o corrimão, levantara o e atirara o pela caixa da escada. Esta crueldade era extraordinariamente expressiva; mais ninguém a não ser Sonzogne poderia matar um homem desta maneira. Mas, como já disse, tinha uma única ideia e nem mesmo cheguei a interessar me pelos artigos que contavam como mais tarde, durante a noite. Sonzogne fora morto a tiro enquanto fugia pelos telhados como um gato. Experimentava uma espécie de náusea por tudo o que não dissesse respeito a Jaime, e ao mesmo tempo pensar nele enchia me de uma angústia insuportável. Por duas ou três vezes recordei Astárito; lembrava me do seu amor por mim e da sua melancolia com um sentimento de piedade tão forte como impotente; se não sentisse esta angústia por causa de Jaime teria com certeza chorado e rezado por esta alma, que nenhuma luz tinha alegrado e que fora separada do corpo de uma forma tão prematura e tão desumana. Foi assim que passei este primeiro dia, a noite, o dia seguinte e a outra noite. Estendida na cama ou sentada numa cadeira, apertava com força entre as mãos um casaco de Jaime, que encontrara pendurado no bengaleiro, e beijava o de vez em quando com paixão, ou mordia o para refrear a minha grande inquietação. Mesmo quando minha mãe me obrigava a tomar algum alimento, comia com uma das mãos e com a outra apertava convulsivamente o casaco. A segunda noite minha mãe quis deitar me; deixei me despir sem oferecer resistência. Mas quando tentou tirar me o casaco, dei um grito de tal maneira aflitivo que minha mãe se assustou. Ela nada sabia, mas compreendeu vagamente que me desesperava com a ausência de Jaime. Ao terceiro dia tive uma ideia e toda a manhã me agarrei a ela com obstinação, se bem que compreendesse que não tinha muito fundamento. Pensava que Jaime se assustara ao saber que eu estava grávida, que quisera fugir às obrigações que lhe impunham o meu estado e que se refugiara em sua casa, na província. Era uma vil suposição: mas preferia imaginar uma cobardia sua a admitir outra hipóteses tão tristes, sugeridas pelas circunstâncias que tinham acompanhado a sua desaparição. Nesse mesmo dia, à tarde, minha mãe entrou no meu quarto e atirou me para cima da cama uma carta. Reconheci a letra de Jaime e senti uma grande alegria.

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